A presença de alguém
17 de agosto de 2013

Por Rebeca Reale – Blog O Filme que Habito – 17 de agosto de 2013

 

Pouco a pouco as dores viram água, viram memória. As memórias vão com o tempo, se desfazem. Mas algumas não encontram conforto, só algum alívio nas pequenas brechas da poesia. Você é a minha memória inconsolável, feita de pedra e de sombra. E é dela que tudo nasce e dança.

Nunca pensei que consideraria um filme brasileiro como meu favorito. Sim, tenho aquele preconceito que a maioria tem e constantemente filmes brasileiros me irritam. Mas com Elena foi diferente. Como disse Jorge Furtado, ”Petra inventou uma nova forma de filmar, filmou a alma”. E foi exatamente com os olhos da alma que eu assisti a esse filme. Hoje é sábado. Assisti Elena quinta-feira, sexta-feira e hoje, e a vontade de assistir novamente ainda não sumiu do meu corpo.

O fator primordial que influenciou tanto meus sentimentos foi o fato de que a história se passa entre duas irmãs, uma mais velha e uma mais nova (e eu não pude deixar de me pôr no lugar das personagens, visto que eu tenho 21 anos e minha irmã, 7). Elena é poesia, é alma, é amor. Talvez seja uma história de superação, mas é muita mais sobre se consolar e aprender a viver sem ter aquilo o que você mais deseja: a presença de alguém.

O filme é um documentário, uma biografia. Petra Costa, diretora, conta a história de sua irmã,Elena Costa, e como foi sua vida a partir do distanciamento por parte dela. Petra volta à Nova York no intuito de encontrar Elena caminhando pelas ruas com sua blusa de seda. Leva com ela apenas lembranças que a irmã deixou no Brasil: filmes, recortes de jornais, diários e cartas. Petra precisa encontrar Elena para que possa continuar a viver. Se ela deixar Elena continuar vivendo em sua memória, e principalmente em sua alma, ela não conseguirá seguir em frente.

Será que a minha raiz vai conseguir arrebentar asfaltos, canos e prédios pra sobreviver e gerar frutos? Sim, se minha raiz fosse forte, grande, mas sinto que a minha semente nem chegou a brotar direito ainda. Então, provavelmente em uma cidade, ela se brotasse, miúda e doente viveria.

Elena nasceu na época da ditadura militar e viveu na clandestinidade. Seus pais, com desejo de revolução, queriam ir à guerra. Petra deixa claro o que salvou a vida deles: Elena, o bebê de seis meses na barriga da mãe. Desde os 4 anos de idade ela teve convicção de que queria ser atriz, como sua progenitora. Alguns anos depois, nasce Petra, com a qual Elena passa os dias brincando de teatro e ensinando a atuar.

Quando Petra faz 7 anos, sua irmã a leva até o quarto e diz que elas irão ficar separadas por algum tempo, pois ela iria morar longe. Elena está deixando de brincar de teatro para virar atriz. E Petra confirma: 7 anos foi realmente sua pior idade. Nenhuma criança de sete anos gostaria de se separar de uma irmã que ama demais.

Elena, em Nova York, faz várias entrevistas, mas ninguém liga de volta. Ela passa a ficar deprimida, se achar feia e gorda, e sem esperanças de que algum dia sua raiz se torne forte o suficiente para se fixar em algum lugar. Por esses problemas, ela volta ao Brasil, na esperança de que possa se reencontrar. Mas, novamente, ela volta à Nova York, pois foi aceita na Universidade, dessa vez levando consigo mãe e irmã.

Petra odeia Nova York. Odeia o frio, odeia o fato de ter que aprender inglês. Mesmo com a presença da família, Elena continua deprimida, chorando, gritando, apenas desejando a morte. Ela deixa claro que, se ela não consegue viver com a arte, ela prefere morrer. A depressão fica evidente aos olhos da família, e isso influencia os sentimentos de Petra.

Esse corpo tá doente. A vida o fez totalmente doente. Totalmente. Aquele eu descontrolado voltou e eu ajo como se atuasse, percebo tudo como numa tela de cinema: o meu tempo, respiração, os olhos ficando diferentes. O mundo tá vazio, deserto, não adianta esperar por ninguém. Você tá só, completamente só.

A partir daqui, é impossível um texto sem spoilers. Mas vale a pena ler e assistir ao filme mesmo já sabendo a história, essa é a minha dica.

Elena se auto-critica o tempo todo. Como eu disse, para ela, a vida sem arte não é vida, e dessa maneira ela prefere desaparecer do mundo, dormir para sempre, entrar na escuridão. Então, o inevitável acontece: Elena escreve uma carta e engole um frasco de aspirinas… com cachaça. Elena morre. E deixa no mundo uma mãe feita de saudades, um pai que apenas olha para longe quando perguntam sobre ela, e uma irmã que sofre sem sua presença. “It hurts my feelings” foi a primeira coisa que Petra disse quando viu a mãe triste e perguntou se sua babá havia morrido. Quando recebeu a resposta de que quem havia partido era sua irmã, ela achou o mundo um lugar totalmente cruel.

Petra, a partir daí, também foi diagnosticada com depressão. Tinha sentimentos de culpa e evitava falar de sua irmã. Um dia, quando tinha 10 anos, ela finalmente percebeu que Elena havia morrido pra sempre. “E ela, não volta mais?”. “Não. Ela tá morta”.

Uma tarde, dando voltas em círculos, eu percebo que você morreu. Pra sempre. Volto pra dentro da casa e percebo que minha mãe pode morrer. E penso que se pensei isso, quer dizer que ela vai mesmo morrer a qualquer momento. Que é um sinal. E que eu devo fazer tudo pra evitar. Começo a fazer promessas constantes: que eu não vou comer mais sal, que eu vou subir todas as escadas do nosso apartamento no décimo nono andar de joelhos e que nunca mais vou me olhar no espelho, pra ela não morrer. Sempre entrava no banheiro de olhos fechados.

O tempo vai passando e as memórias vão sumindo, e Elena sumindo junto com elas. Petra cresce, e chega na época do vestibular. “Agora, você já está mais velha do que Elena”. De última hora, ela decide fazer teatro, como a irmã. A partir daí, foi como se Elena voltasse. Não só na memória, mas dessa vez dentro da alma de Petra. Ela sente a irmã dentro de seu ser, e mais, como sendo seu próprio ser. As duas irmãs vão se (con)fundindo em um só corpo, e Petra passa a se sentir da mesma forma como Elena se sentia nas semanas antes de morrer: deprimida, cansada, apenas desejando colocar fim nos momentos de infelicidade que ela vinha vivendo.

Se ela me convence que a vida não vale a pena, eu tenho que morrer com ela”. E para não pôr fim à própria vida, Petra precisa encenar sua própria morte, a morte dela e de Elena, para que consiga viver sem os sentimentos de que está se transformando em sua irmã. Dessa vez, Petra tem consciência da morte da irmã – um sentimento que veio com prazer e imensa dor. Elena passa a se materializar e sair do corpo de Petra na medida em que esta a busca nas ruas de Nova York, na medida em que encontra seus vídeos, cartas e lembranças.

Eu quero morrer. Razão? Tantas que seria ridículo mencioná-las. Eu desisto, desisto porque meu coração tá tão triste que eu sinto achar-me no direito de não perambular por aí com esse corpo que ocupa espaço e esmaga mais o que eu tenho de tão, tão frágil.

Petra supera Elena para continuar vivendo. Dessa vez, ela entende que Elena se foi para sempre, e que agora é apenas uma memória. Uma memória inconsolável, feita de pedra e de sombra. Mesmo sendo uma memória sem consolo, Petra aprendeu a se conformar para continuar com seu papel em seu próprio filme. Assim como, quando criança, ela entendeu que a pequena sereia precisou morrer para que um dia fosse o que queria ser, agora ela entende os motivos que fizeram Elena partir.



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