Ofélias que flutuam no mar de sentimentos…

por: Raivane Sales no Cabine Cultural – 12/6/2013

Um vazio cheio. Um silêncio que grita.
Ofélias que flutuam no mar de sentimentos…
No fim de tudo, resta o silêncio, que é a minha liberdade. O meu vazio.
(Paulo Mendes Campos)

E foi com esse sentimento que saí do cinema, após assistir o documentário “Elena”…era quase mastigável…um oco…um eco…qualquer coisa de mim que se expandia sem que eu pudesse controlar…

Impressionada! Foi mesmo um filme ou uma tela gigante do mais profundo impressionismo? Exatamente assim, Elena surgiu diante dos meus olhos: um Van Gogh pós-moderno traduzido pelo código cinematográfico.

Elena

Uma película primorosa, que nos prende por todos os ângulos. Somos inundados por sua beleza plástica, imagens em tons profundamente poéticos e de texturas que remetem a lembranças tão tangíveis, que quase é possível sentir o cheiro delas, através da leitura das cartas e dos diários de Elena.

A trama psicológica parece ser um labirinto, no qual é difícil de encontrar um novelo. Simplesmente não há saída, senão nos entregarmos à espantosa poesia que transborda na tela.

Elena

Narrada em primeira pessoa, a história torna-nos muito próximos de todas as personagens. A angústia de todas elas vai tomando-nos, como numa espécie de transferência, e, de repente o que era estritamente pessoal passa a pertencer a todos nós, espectadores.  Esse, talvez, seja um possível novelo que, aqui, no lugar de nos mostrar a saída, vai levando-nos cada vez mais para dentro do labirinto que é a alma humana. A poesia vai permeando esse caminho, não apenas através do texto, mas das imagens construídas.

Como não perdermos o fôlego, ao mergulharmos em águas tão íntimas? Quando Elena diz estar entrando pelo ralo, vamos juntos com ela, em uma cena magnífica, que mais parece um filme em 3D, de tão intensas as sensações de estarmos sendo arrastados para esse lugar escuro, o qual nos remete ao inconsciente, esse estranho que nos habita, guardador de experiências que preferiríamos esquecer.

“…Há uma ilha crescendo dentro da noite
Não há salva-vidas quando o escuro vem…”   (RaiBlue)

Elena precisou enfrentá-lo, para tocar o vazio de sua existência e partir. Petra, por sua vez, necessitou, também, adentrar esse mundo desconhecido, a fim de ir ao encontro de Elena, para finalmente desencarná-la de si.

Ofélias flutuam no mar de sentimentos e no vestido de Elena ou, poderíamos dizer, das Elenas, que nada têm a ver com a Helena de Chico Buarque. Afinal das mulheres de Atenas, Elena não possui nada em comum. O cenário não é Tróia, mas Nova York. Ela trava outra guerra: a de vencer a si. Traz na alma outra mulher: a Ofélia. O que diria Shakespeare de ver sempre renascendo sua personagem dramática, do clássico Hamlet, em uma obra pós-moderna? Essa foi uma sacada genial de Petra Costa, diretora , co-roteirista , personagem e irmã mais nova de Elena, na vida real.

Elenas, Sylvias,  Anas Cristinas,  Florbelas, Virgínias, todas elas representantes de um eu feminino que não cabia na realidade, transbordavam através de sua arte,  na tentativa de realizá-la com uma perfeição que, na verdade, era exigida de si mesmas. A busca incessante e o vazio no final, ou por não preencher ou por não alcançar a realização, o inacessível êxtase existencial!

Elena

Petra reconstitui sua história familiar, porque não consegue esquecer Elena. Na verdade, Elena continua existindo nela, a ponto de se confundir, de fazê-la se perder de si e pensar em ter o mesmo fim. Refazer o percurso de Elena seria uma espécie de renascimento, encarar que, de fato, sua irmã não estava mais ali, mas que ela, Petra, continuava, aliás, finalmente existia. Antes, era somente projeção, reflexo, uma identidade confusa que precisava se firmar.

Será que Freud explicaria a intensa relação entre a mãe, Petra e Elena? Dentre sonhos, projeções e fracassos, Petra consegue sobreviver e realizar o desejo da mãe e de sua irmã mais velha: ser atriz de cinema. E vai mais além, tornando-se uma brilhante e surpreendente cineasta.

Se “Perder-se também é caminho”, como diz a grande Clarice Lispector, Elena não pode ser condenada. Foi até o fundo do labirinto. O grande risco era não conseguir mais voltar. E, infelizmente, ela não retornou.

Coragem ou covardia? Contrariando uma grande maioria, penso na força que se precisa ter para abrir mão da própria vida.

“…Elena é minha memória inconsolável…feita de pedra e sal…”  (Petra Costa)

Queriam que Petra a esquecesse. Impossível. Definitivamente Elena fora imortalizada.

Elena

Entre as tralhas do tempo e uma trilha sonora que nos arrebata e nos arremessa para dentro, para o mais profundo de nós, Elena continua a flutuar no escuro, quando a tela se apaga. Lunar, vai iluminando o nosso caminho de volta… Continua a dançar…, não apenas para sua irmã mais nova, mas para todos nós que fomos convidados a lê-la, como quem lê a mais bela e melancólica poesia…

Entender? Senti-la. E isso basta.

Afinal, “viver ultrapassa qualquer entendimento…”
(Clarice Lispector)

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