Entrevista com Petra Costa no boletim eletrônico das Bibliotecas da EBP
15 de outubro de 2013

Por Tânia Abreu, da Escola Brasileira de Psiquiatria

Em uma quinta feira do mês de agosto conversei com Petra Costa, diretora, produtora e atriz do filme Elena, um documentário de fundo psicológico, que em 80 minutos discorre sobre temas que deslizam da situação política do Brasil sob ditadura e seus rescaldos ao íntimo de uma jovem em busca de elaborar o luto da perda da irmã 13 anos mais velha. O que para Petra era uma dívida para com sua irmã tornou-se um sonho realizado sob a égide de imagens e arquétipos inesquecíveis para quem ver Elena.

Tânia Abreu : Qual a função da arte em sua vida?

Petra Costa: As mulheres da família têm uma paixão pela arte. É algo que vinha da minha mãe, da avó que, em 1950, já tinha uma câmera filmadora. Meu primeiro curta, Olhos de Ressaca, foi feito com imagens captadas pela minha avó. A arte dá sentido para a vida, para a existência das mulheres da família. Através dela consegui resignificar o trauma da perda da minha irmã, elaborando meu luto por este viés.

TA: Que influências artísticas, literárias, culturais enfim foram desencadeantes para fazer o filme?

PC: A leitura de Bachelar, “A água e os sonhos”, inspirou sobremaneira a filmagem de Elena, a partir dele a água foi usada como elemento que significava tanto a morte quanto o nascimento. O filme Bicho de Sete Cabeças de Laís Bodanzy também foi importante para Elena, visto que ele trata do rito de passagem para a vida adulta pelo ponto de vista masculino, e Elena quer discutir estes rituais de passagem do ponto de vista feminino. O filme, por um lado, era algo que devia a minha irmã e havia me prometido 10 anos antes fazer e por outro é uma oportunidade de se discutir sobre o suicídio do ponto de vista feminino.

TA: Sim é importante, inclusive que se aborde o suicídio como ato de coragem e não de covardia.

PC: Sim é verdade, mesmo que Elena não tivesse a intenção de se matar – houve uma contingência, minha mãe demorou de voltar e um amigo não conseguiu chegar a tempo de evitar- foi um ato de coragem. O filme tem como objetivo tirar minha irmã do mundo dos esquecidos e trazê-la de volta, para se discutir muitos tabus que giram em torno das mulheres. Deste modo podemos discutir o trauma de muitas mulheres através de uma mulher.

TA: O elemento água é pregnante no filme. Qual a função dele na sua vida?

Outra influência importante em minha vida foi Ofélia que se afoga nas águas do rio, assim como as pinturas românticas com as quais me identificava. Ofélia funcionou como uma espécie de arquétipo em Elena, podendo mesmo dizer que é um filme sobre o momento de Ofélia. O primeiro encontro como os diários de Elena foi como tocar o mundo dos esquecidos, por isso falei em trazê-la de volta. Esse encontro criou uma espécie de crise de identidade, pois em alguns momentos já não sabia mais quem era minha irmã e quem era eu. Ambas apresentavam dificuldades para transitar da adolescência para a vida adulta, sobretudo no lidar com a emoções que transbordam, dificultando a canalização. Há também a importância dos sonhos. Um dia eu acordei perturbada de um sonho em que Elena e eu nos confundíamos e eu já não sabia quem havia morrido, se ela ou eu, e foi a partir dessa confusão de identidades entre as duas que pensei iniciar o filme. Mergulhei no filme para cumprir minha promessa, pois sentia que devia isto a Elena. É possível se ler mais sobre a importância dos sonhos para a construção do filme no nosso site ou no pressbook onde há mais elementos sobre estes pontos.

TA: Qual a sua relação com a Psicanálise ou outras terapias?

Eu passei por vários momentos de tristeza na minha infância e poucas pessoas conseguiram me ajudar a lidar com essa melancolia. Poucos estão dispostos a ouvir, não há o hábito de falar sobre esses assuntos. O filme é fruto desse desejo de chamar a atenção para a tristeza, para a melancolia. Acredito que quando a tristeza é resignificada a dor se transforma em força.

No meu caso, a arte por si só não seria suficiente para que eu me encontrasse, receber apoio terapêutico também foi muito importante. Eu faço terapia desde os sete anos, mas nunca com alguém que fosse focado na questão do suicídio. Então, quando fiz o filme, entrevistei alguns sobreviventes. Nos Estados Unidos, conversei com uma mãe que havia perdido seu filho e que se tornou líder de um grupo de apoio. Ela foi a primeira pessoa com quem falei que entendia a dor pela qual eu e minha mãe tínhamos passado. Se eu tivesse participado de algum grupo de apoio para crianças sobreviventes, isso teria feito muita diferença. A gente passa por coisas muito parecidas. Primeiro vem a culpa, depois o medo de perder os outros – eu passei a temer a morte da minha mãe – mais adiante o temor de que a mesma coisa pudesse acontecer com a gente. Ninguém me falou que isso tudo poderia ser normal. Se eu tivesse me tratado com um profissional com essa experiência, teria me poupado muito. Demorei 20 anos para falar com alguém sobre esse assunto.

A arte me deu a possibilidade de compartilhar a minha história e com isso ver como essa história produz ecos nas de outras pessoas, como ela pode inspirá-las a resignificar traumas e memórias inconsoláveis, como falamos no filme. Quando falo que “Elena é minha memória inconsolável e que é disso que tudo nasce e dança”, quero dizer que ela me inspira, que me ensina sobre a morte e, portanto, sobre a essência da vida.

TA: Muito obrigado Petra pela entrevista assim como pela autorização para exibirmos o filme nas sedes da Escola Brasileira de Psicanálise. Ele é belíssimo e tem sido visto e admirado por muitas mulheres e psicólogas como você queria.

PC: Fico feliz em saber que vocês se interessaram por Elena. Muito obrigada.



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