Folha de Pernambuco destaca filmes que humanizam personagens
12 de agosto de 2014

Em uma reportagem publicada na edição do dia 12 de agosto de 2014, o jornal Folha de Pernambuco traça paralelos entre os documentários Santiago (2007), de João Moreira Salles,  e ELENA (2012), de Petra Costa. Leia o texto escrito pelo jornalista Renato Contente:

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Muito mais que uma questão estética

No documentário “Santiago” (2007), João Moreira Salles reconstrói a memória do mordomo que cuidou de sua família por 30 anos. As imagens foram registradas em 1992, mas até 2005 não haviam formado sentido para o cineasta, que só então decidiu fazer um filme sobre um filme que não existiu. No longa, ele utiliza as entrevistas com Santiago como uma crítica ao distanciamento que ele mesmo impunha à época: do outro lado da câmera, controlava as falas do funcionário, manipulava o andar das entrevistas e tentava ajustá-lo ao mise-enscène que tinha em mente. No filme, João olha para isso quase como quem se castiga; deixa evidentes seus erros, conflitos e o enorme afeto que tem pelo homem.

“Santiago” ressalta uma tendência do documentário nacional recente em que o afeto aparece não apenas como tema, mas como componente narrativo essencial e de certa maneira universal. Desde longas como “Santo forte” (1999) e “Babilônia 2000” (2000), quando Eduardo Coutinho consolida o formato em que os entrevistados conduzem os filmes a partir de relatos pessoais, até os mais recentes “Elena” (2012), de Petra Costa, e “Doméstica” (2012), de Marcelo Pedroso, percebem-se traços convergentes quanto a um documentário da experiência pessoal e da primeira pessoa.

Cena do documentário "Santiago", de João Moreira Salles

Cena do documentário “Santiago”, de João Moreira Salles

Para o pesquisador Fábio Ramalho, que estudou a relação entre cinema e afeto em sua tese de doutorado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), há uma tendência de se pensar o afeto no cinema a partir da configuração de uma estética, tendo em vista certas maneiras de filmar, modos de constituição das imagens, procedimentos formais e estéticos. “Temos aí muito mais que um modo de filmar ou uma determinada configuração visual: trata-se de uma maneira de enxergar o mundo e as relações, e, em particular, uma maneira de enxergar o lugar e a importância das imagens nessa rede de relações”, defendeu o pesquisador. De acordo com Petra Costa, autora de “Elena”, o cinema brasileiro, tanto de ficção como de documentário, sempre teve uma tradição de olhar mais para o outro, e apenas nas últimas décadas foi ajustando o foco na intimidade. “Mas dentro desses filmes, do (Eduardo) Coutinho e do João (Moreira Salles), por exemplo, acaba se falando de questões políticas dentro desse íntimo. ‘Santiago’ traz relações dentro de uma família, mas fala de maneira profunda sobre questões de poder. Desse tipo de filme acaba vindo a narrativa contundente e com uma estética baseada no afeto”, analisou.

O pernambucano “Doméstica” também traz uma abordagem baseada no afeto para discutir relações de poder. Para realizá-lo, Gabriel Mascaro convocou jovens de todo o País a filmarem a relação com suas empregadas domésticas. “Pensando na etimologia do afeto, que tem como gênese o conceito de ‘produzir impressão’, o afeto para mim traz uma força motriz que naturalmente passa por questões mais amplas do que a apaziguação. As experiências afetivas que emanam desses encontros entre jovens filmando suas empregadas podem ser lidas como extremamente afetuosas, reveladoras e potentes, assim como desconcertantemente violentas”, defendeu o cineasta. Para João Moreira Salles, como proferido num debate no ano passado, parte significativa dos documentários nacionais recentes não rejeita o afeto e o que está por perto. “Acho que o cinema, de um modo geral, ainda de ficção, toma partido do que está longe do diretor e do que é brutal, e portanto o avesso do afeto. O documentário vai na contramão disso, humanizando o cinema brasileiro, eu acho. A parte da beleza e da força desses filmes é que são filmes necessários, porque precisavam ser feitos para resolver questões que são determinantes para a vida, e precisavam ser feitos só pelas pessoas que o fizeram”.

Memória construída a partir de fragmentos

Cena_Elena_atriz_de verdade_maquiagemCom poucas sessões no Recife no ano passado, “Elena”, de Petra Costa, ganhou recentemente uma caprichada edição em DVD pelo Instituto Moreira Salles (IMS). No documentário, Petra tenta reconstituir a memória de sua irmã, que cometeu suicídio quando a cineasta tinha sete anos. O filme é construído a partir de fragmentos poéticos, trechos de cartas e diários, filmes caseiros e entrevistas com pessoas que conviveram com Elena. De acordo com Petra, o filme começou a tomar corpo na medida em que ela ia compreendendo os temas por trás dos acontecimentos, como o afeto entre duas irmãs, as relações de pais e filhos, as angústias, a transição da adolescência para a vida adulta e, principalmente, o luto e o suicídio. “Vimos que há poucos filmes que tratam desses assunto, especialmente pela perspectiva feminina. São temas que afetam profundamente a vida das pessoas e que a gente tentou não falar de uma maneira restrita”, explicou.

capaDVDElena (1)Para a edição em DVD, foi produzida uma faixa comentada em que Petra, João Moreira Salles e o crítico Carlos Alberto Mattos conversam e refletem sobre o filme cena a cena. A edição também inclui o curta-metragem “Olhos de ressaca” (em que Petra retrata a relação de seus avós) e um livreto com textos assinados pela própria diretora e críticos, como Ismail Xavier e Miguel Pereira.

“Foi muito interessante a conversa para se produzir esse DVD. Quando ainda estávamos montando o filme procurei o João Moreira para que ele desse uma opinião; eu sentia uma identificação muito grande por ter visto ‘Santiago’ e percebido a maneira de documentar uma história extremamente pessoal e íntima. Na época ele me deu várias sugestões super importantes e que ajudaram a construir o filme”, comentou Petra. A cineasta ainda afirmou que, como muitos extras ficaram de fora do DVD, ainda haverá outros produtos oriundos do filme.



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