Petra Costa, cineasta, de “Elena”, filme sobre sua irmã: “É uma memória inconsolável”
14 de junho de 2013
por: Maria Laura Neves – Revista Cláudia – 14/6/2013
Petra tinha apenas 7 anos quando a irmã, Elena, se matou. Aos 26, decidiu fazer um filme para não deixá-la no “mundo dos esquecidos”. Aqui, conta a história real que originou Elena, longa que estreia em maio e a ajudou a resgatar a relação interrompida
“A primeira lembrança que eu tenho de Elena é a do dia em que ela me levou para dentro do mar. Eu tinha uns 3 anos e brincava só na areia da praia. Aí ela me pegou no colo e fomos mergulhando, atravessando as ondas, até passar a arrebentação. Chegamos a águas plácidas e calmas. Foi uma descoberta para mim. Aquele era um novo mundo, um mar que eu não conhecia. Depois, lembro bem do meu sétimo aniversário, quando ela, já aos 20, estava de partida para Nova York. Antes de viajar, disse: `Petra, você está fazendo 7 anos, e essa é a pior idade que tem. Vou te dar esta concha (daquelas grandes, que, quando colocadas no ouvido, permitem que se escute o barulho do mar) e vou levar uma comigo. Quando você precisar, me chame, e a gente se fala por ela.
Elena sempre quis ser atriz e decidiu se mudar para os Estados Unidos para realizar esse sonho. Poucos meses depois, eu e nossa mãe fomos morar lá também. Elena estava triste e frustrada porque suas expectativas de trabalho não estavam se concretizando. Quando chegamos, percebi sua dor, embora não entendesse bem o que acontecia. Após seis meses vivendo em Nova York, eu estava adaptada e feliz. Na minha escola, havia uma atividade em que os alunos levavam um objeto querido para a classe e falavam sobre ele para os colegas. Em um dia desses, Elena me acordou e pedi a ela que me ajudasse a escolher o que levar. Ela me trouxe um saco de biscoitos. Sua atitude não fazia sentido, eu precisava de algo de estimação, que merecesse uma explicação. Elena estava estranha, pesada. Acabei optando por um cachorrinho de pelúcia. Foi a última vez que a vi. Uma prima me buscou na escola e acabei dormindo na casa dela. De manhã, quando voltei para nosso apartamento, vi o olhar de choque no rosto da minha mãe. Notei logo que alguém tinha morrido. Perguntei quem era, e ela respondeu: Elena. Só consegui dizer: `It hurts my feelings (“isso me machuca demais”, em uma tradução livre). Ninguém nunca escondeu de mim que ela havia se suicidado (com a ingestão de álcool e comprimidos).
Voltamos para o Brasil – e eu, que até então era uma criança desinibida, fiquei tímida por causa da tristeza. Fui fazer terapia, mas me lembro de que muitos adultos me diziam para não demonstrar minha dor. Falavam que minha mãe já estava mal com tudo o que tinha acontecido e que eu não deveria preocupá-la com meu sofrimento. Três anos depois da morte de Elena, um amigo perdeu a mãe, e eu passei a ter crises de pânico. A ideia de que minha mãe morreria virou uma obsessão. Eu fazia dezenas de promessas, determinada a evitar que isso acontecesse. Ela, por outro lado, tinha medo de que eu quisesse ser atriz e morar em Nova York.
Na adolescência, comecei a fazer aulas de teatro, o que ajudou a soltar minha tristeza. Fiquei menos tímida. À medida que eu crescia, as pessoas viviam dizendo quanto estava ficando parecida com Elena. No fundo, eu também tinha medo de que meu destino fosse o mesmo que o de minha irmã. E, de fato, acabei trilhando um caminho muito semelhante ao dela. Prestei vestibular para artes cênicas em várias faculdades e, aos 20 anos, me matriculei nesse curso na Universidade de Columbia, em Nova York. No entanto, minha experiência foi bastante diferente da dela. Eu me senti bem e me encontrei na cidade. Fui feliz lá.
Aos 26 anos, sonhei com Elena. Ela estava sobre um muro, enroscada em uma cerca elétrica e tentava tomar choques. Só que quem morria com eles era eu. Quando acordei, decidi que faria um filme sobre ela. Tinha que tirar Elena do mundo dos esquecidos. Comecei a ler seus diários, ver seus vídeos e ouvir as gravações que tinha feito em fitas cassete. Entrevistei umas 50 pessoas que conviveram com ela. Eu me entreguei completamente a esse trabalho, que teve momentos muito difíceis. Com ele, conheci Elena intimamente: seu tom de voz, sua maneira de falar… Tive raiva dela em certas ocasiões também. E descobri características fascinantes, que me inspiram até hoje. Aprendi a importância da entrega – ela não fazia nada pela metade, entrava de cabeça em tudo. E era como se, a cada descoberta que ela fazia, eu ganhasse uma irmã nova. O problema é que a perdia logo depois, na fração de segundo seguinte. Era ganhá-la para perdê-la.
Nesse processo, descobri que ela tinha chegado viva ao hospital e até parecia que ia ficar bem, mas morrera porque, desmaiada, engasgara com o próprio vômito. Ler a autópsia e ver que seu coração pesava 300 gramas foi muito duro. Durante os três anos em que trabalhei no filme, tive cinco sonhos emblemáticos com Elena. O primeiro foi o da cerca elétrica. Entre os que vieram depois, teve um em que ela aparecia em uma sala com vários instrumentos cortantes e as pessoas que estavam ali esperavam que ela se machucasse na frente delas. Eu tentava impedir. Em outro sonho da série, eu sobrevoava em um avião uma mata em que uma parte era alaranjada, como ocorre no outono. Uma voz, então, dizia que Elena se encontrava nesse lado da floresta, na parte boa, e que ela estava bem.
Agora, com o projeto terminado, Elena não é mais um nó nas minhas lembranças. Quando penso nela hoje, consigo vê-la com clareza. O processo serviu para que eu elaborasse e aceitasse melhor a dor por sua morte. Mas ainda é uma memória inconsolável. Já fiz exibições em vários países e nunca assisti ao filme depois de pronto. Outro ponto que considero positivo é que quem assiste Elena se sente instado a falar de suas lembranças, a enfrentar as próprias memórias inconsoláveis.”
São 12 vídeos exclusivos, mais um making of do processo criativo do filme, totalizando cerca de 90 minutos de material extra. Conheça o conteúdo.