“Elena”, documentário de Petra Costa, é um caleidoscópio…
2 de abril de 2013
por: Viviane de Almeida – Cine Zen Cultural – 02/04/2013
Toque-me, toque-me pede a música de fundo porque em um instante Elena vira água, se desfaz em gotas, desaparece.
Adoro caleidoscópios.
Livremente em uma tradução, para mim é uma espécie de ópio que cala, é o olhar seccionado que rompe o invólucro do formal.
Não encontro exatidão, em que momento vi pela primeira vez o mundo dessa maneira peculiar. A memória é confusa, provavelmente infantil, mas a permanência da sensação de plenitude é concreta.
Um caleidoscópio é um objeto óptico formado por espelhos, que através da reflexão da luz, cria a cada movimento, efeitos visuais mutantes .
No seu interior encontram-se três espelhos planos, formando ângulos de 60 graus entre si, pelo que o observador verá 6 imagens simétricas, que se confundirão numa só.
A chave da minha obsessão por caleidoscópios está no mutante – palavra que balança entre a mudança e o estranhamento.
Gosto do estranhamento, e de obsessões, às vezes.
“Elena”, documentário de Petra Costa, é um caleidoscópio.
Como olhos de ressaca, fez-me cativa, puxando-me para o fundo do mar.
Fisgou-me e fui em busca do enferrujado anzol da captura, assim, como Petra de Elena.
Esbarrei no tempo solitário de 3min20s de um trailer entre um filme e outro e em uma resenha fria:
Elena viaja para Nova York com o sonho de ser atriz de cinema. Aos 20 anos, encontra uma realidade que a obriga a abdicar do sonho e a tomar atitudes extremas. Duas décadas depois, é sua irmã Petra, 13 anos mais nova, quem vai para a mesma cidade em busca das memórias de Elena.
É só o que eu tinha.
Viro o caleidoscópio para inverter as circunstâncias, vou por atalhos e deparo-me novamente com os olhos de ressaca.
Sei, os de Cqpitu de Assis. Não! – respondo com uma inquietação de língua no céu da boca.
Os da negação de Bentinho, porque não são oblíquos, nem dissimulados.
São os de uma história de amor real, forte, materna e viril entre Vera e Gabriel.
Para reconstruir a história de Elena, conheço seus avós – uma mescla de realidade e imaginação. A avó Vera diz que ela é mais real e o avô Gabriel, com o qual está casada há sessenta anos, é sonho.
Petra Costa, dirige os avós e suas memórias no curta “Olhos de Ressaca” (2009) e dedica-o à Elena.
“Aprendemos palavras para melhorar os olhos.”, afirma o escritor Rubem Alves. Aceito, mas também penso que aprendemos palavras e inventamos outras para mantermos fixas na parede a nossa compreensão do mundo.
Essencialmente, para não nos perdermos.
Bartolomeu Campos de Queiroz, o escritor, conta que seu avô escrevia nas paredes de sua casa o cotidiano de sua vida em Pitangui e das inúmeras vidas que juntas faziam um enorme caleidoscópio.
E paredes podem ser e estar em qualquer coisa e lugar.
Em sua parede pessoal, um diário, Elena lança uma avassaladora questão:
“Se a vida é simples, do que eu tenho medo?.”
Repito-a internamente e depois em voz alta: “Se a vida é simples, do que eu tenho medo?”.
Respondo: Elena, você tem medo, porque ela não é simples. A vida não é simples – reitero e finalizo.
Insolúvel? Sua avó suaviza quando afirma no documentário Olhos de Ressaca que com a idade a gente distingue melhor a aproximação das pessoas.
Elena não teve tempo.
Jorge Luís Borges, escritor argentino, foi acometido de cegueira gradual e descreveu o processo e a sensação no seu conto O outro, “É como um lento entardecer de verão. Verás a cor amarela, sombras e luzes”.Nesse conto, Borges trava um diálogo com o seu suposto “outro” muitos anos mais novo sentado no mesmo banco em frente ao rio Charles em Boston, Estados Unidos.
“Essa percepção das coisas que nos envolvem, aumentam com a idade. Um carinho muito suave que dá estímulo da gente continuar tudo.”, complementa Vera ao “outro” envelhecido de Borges.
É esse “tudo” que empurra Petra em direção a Elena, e eu vou junto.
“Eu precisava ir aonde o meu medo estava. A cidade teve esse papel, pois descobri meu caminho, e ele era bem diferente do de Elena.”, confessa a diretora.
Retomando Borges e o seu conto: “Eu conversei com ele na vigília e a lembrança ainda me atormenta. O outro me sonhou, mas não me sonhou rigorosamente”. Descobri o meu caminho, e ele era bem diferente do de Elena.
Elena rodopia seu cabelo longo e adolescente pela sala e passa os textos com sua irmã mais nova. Elena caminha pelas ruas de Nova York, nunca dorme e encontra Coppola.
Elena vive. “Sinto que a minha vida está melhor do que nunca”. , afirma em um depoimento de uma voz em entusiamo congelada pelo tempo.
Mais uma rodada no caleidoscópio.
A mãe conta e fico a saber que para Elena a arte era tudo e sem ela preferiria morrer.
Impressiona-me, entre milhares de partículas de sensibilidade, a cena em que maternalmente declara:“Ela me diz que sentia um vazio enorme aqui” e aperta com intensa suavidade o meio do peito.
Aperto junto.
Petra caminha pelas ruas de Nova York e refaz pedras e caminhos.
De repente, alguém lhe diz: “Vocês se parecem, não é?”. o que não seria invulgar ou inusitado porque são irmãs.
A contundência vêm na sequência :“Vocês tem os olhos muito parecidos. Impressionante”.
Parecidos, assim como as imagens que se formam a partir da mistura dos mesmos componentes de um caleidoscópio – belos e mutantes.
Elena entranha-se.
Escrevo a conta gotas, com tempo e refaço o seu caminho somente a partir de um trailer. Sei que ela partiu, mas sinto uma cumplicidade com a trajetória.
Volto para Nova York na esperança de te encontrar nas ruas – diz Petra.
Antes da partida, sugiro uma última rodada no caleidoscópio.
Os espelhos lentamente misturam-se e formam novas imagens. Acompanho, em estado de vício, o processo da repulsa e aglutinação, da luz que se permite às cores.
Elena desaparece.
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PRÊMIOS:
Em 2012, ganhou os prêmios de Melhor Documentário – Júri Popular, Melhor Direção, Melhor Direção de Arte e Melhor Montagem no Festival de Brasília
Comentários:
Um grade beijo!
Inquietante e angustiante, ELENA faz da realidade um ode às memórias. A sensação de perda latente, do vazio e da angústia.