Setecentos dias na praça – Petra Costa, para a revista piauí
5 de julho de 2013
Pouco mais de dois anos antes, em 25 de janeiro de 2011, Hamdy tomava uma cerveja num bar de Manhattan quando viu na televisão a praça Tahrir e as ruas de sua cidade natal tomadas pela população, que enfrentava a polícia. Era o início da revolta que depôs o ditador Hosni Mubarak. Havia cinco anos, Hamdy tentava construir uma carreira como fotógrafo de cinema em Nova York, e sentia que estava assistindo à sua vida passar em suspenso, como uma mensagem no Skype que não consegue chegar ao destinatário. Os gritos da praça Tahrir o acordaram. Fez as malas e voltou ao Egito num avião comercial com apenas quatro passageiros. Ao desembarcar, Hamdy mal conseguiu andar sobre o mar de gente que dormia no Aeroporto Internacional do Cairo, esperando para sair do país. Ele passou os 700 dias seguintes acampado na Tahrir, onde filmou um documentário chamado The Square, que ganhou o prêmio do público no último Festival de Sundance. Depois, ficou mais 100 dias filmando a Primavera Árabe na Síria, na Líbia, no Bahrein. Onde havia revolta, lá estava ele com sua câmera.
Em Istambul, Hamdy fez seu primeiro programa de turista em muito tempo: comprou um guia e subiu à Torre de Gálata, de onde se avista toda a cidade. Cortada pelo Bósforo, o estreito que separa Ásia e Europa, a antiga Constantinopla se espalha pelos dois continentes. Atrai gente como Hamdy pela força com que reflete o “espírito do tempo” na região, que se debate entre o Estado religioso e o laico, entre a democracia e a ditadura.
Na manhã seguinte, Hamdy andou pelas ruas e viu funcionários das lojas cobrindo com tinta as pichações nas paredes e trocando os vidros quebrados. “A sociedade turca é dividida. Uma parte da população é muito religiosa e outra, concentrada em Istambul, secular e liberal. A convivência desses dois aspectos torna o país muito especial”, diz ele. Mas também alimenta conflitos.
“O povo na praça Taksim questiona as atitudes e pede a renúncia de Erdogan, embora ele tenha sido eleito em um processo democrático. No Egito, pedíamos a queda de uma ditadura de trinta anos e todas as classes estavam presentes. Essa unanimidade e uma meta clara deram aos protestos uma legitimidade que derrubou qualquer questionamento.”
As ruas continuam inquietas nos dois países. Em Istambul, Erdogan adotou a linha dura contra os manifestantes, falou em complô internacional – até disse que o Brasil também é alvo – e fez a vaga promessa de submeter o destino do parque Gezi (situado na praça Taksim) a um plebiscito. No Egito, acredita Hamdy, ainda serão necessários mais vinte ou trinta anos de mobilização para construir uma democracia real. “Os políticos são muito pragmáticos e abrem mão de seus princípios. Precisam de cães de guarda para latirem nas ruas assim que fizerem algo errado ou estiverem prestes a fazer algo errado. É isso que a sociedade turca está fazendo com Erdogan.”
Petra Costa
Se eu pudesse presentear Petra em agradecimento ao filme, oferecia para ela as memórias mágicas dos meus sete anos.