ELENA, por Edmundo Desnoes
4 de junho de 2014

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Por Danilo Casaletti (introdução); Robin Geld (tradução)

O escritor cubano Edmundo Desnoes

Edmundo Desnoes, 83 anos, é um escritor cubano, autor do romance Memórias do Subdesenvolvimento, livro que deu origem ao filme homônimo, dirigido por seu compatriota Tomás Gutiérrez Alea (1928-1996), em 1968. O longa, considerado um dos mais importantes registros do cinema latino-americano, premiado em diversos festivais pelo mundo, mescla documentário e ficção para contar a história de um homem de classe média alta que vê sua mulher e seus amigos fugirem de Cuba logo após a Revolução. O protagonista decide ficar e acompanhar de perto os rumos que sua terra natal irá seguir.

Nos Estados Unidos, o livro Memórias do Subdsenvolvimento foi lançado com o título de Memórias Inconsoláveis, termo que Desnoes tomou de Hiroshima mon Amour, filme dirigido pelo francês Alain Resnais com roteiro de Marguerite Duras, lançado em 1959.

Desnoes, que reside em território americano, foi convidado por Petra Costa para participar de um bate-papo no dia 31 de maio de 2014, em Nova York, no evento Cinema, Memória e América Latina, promovido para o lançamento de ELENA nos Estados Unidos.

Em seu discurso de análise sobre ELENA, Desnoes afirmou que, historicamente, o cinema latino-americano, com raras exceções, tem sido carregado de “realismo social, fingindo revelar o som e a fúria de nossos anseios sociais”, o que deixa de lado o indivíduo, suas dúvidas e ambiguidades. A crítica foi dirigida, inclusive, para o amigo Alea, a quem ele chama de Titón, por Guantanamera (1995), uma tragicomédia que se passa em meio a uma crise de combustível em Cuba. É como se Desnoes pedisse mais Hamlet e menos Dom Quixote.

Especificamente sobre o filme de Petra, Desnoes disse “Vi e continuo a ver Elena (o filme é o personagem) como autêntica visão de nossa mortalidade”.

Leia a tradução do discurso de Edmundo Desnoes:

A literatura e os filmes são em grande parte polissêmicos, abrem-se a diversas leituras. Vivenciei Elena tanto do ponto de vista histórico como da narrativa. A ilusão visual de documentário é apenas a forma, a aparência daquilo que vejo como uma busca por identidade e significado interior. A vida da narradora é apenas um trampolim do qual Petra se lança para revelar a busca por Elena ao girar e rodar no ar e mergulhar nas águas do ser mulher no século 21.

O cinema latino americano tem sido historicamente–com raras exceções– sobrecarregado na expressão da realidade exterior; em muito realismo social, folclore, superfícies brutas. Pretendendo revelar a condição nossa ao som e à fúria de nossas aspirações e nosso comportamento social. No Brasil, desde os filmes de Glauber Rocha a Cidade de Deus.  Até mesmo meu bom amigo Titón não conseguiu evitar uma jornada cubana tragicômica em Guantanamera. Podem ser filmes clássicos, mas criam uma visão distorcida do nosso continente.

Petra Costa deu as costas ao som e à fúria, voltou-se para dentro para explorar a nossa subjetividade, mergulhou nas águas da nossa consciência e nossa necessidade de uma identidade individual, pessoal. Elena emerge do ventre dos pais socialmente comprometidos. Ela até usa imagens de arquivo para afirmar as origens e então se afasta do coletivo para explorar o individual– o restante do filme é a urgente necessidade pela expressão do self. Sofremos de um excesso de Dom Quixote em sua absoluta certeza e muito pouco das dúvidas e da ambiguidade de Hamlet. Elena é um filme que procura restaurar o muito necessitado equilíbrio na América Latina entre a expressão exterior e a busca interior.

Agora vou explorar porque vejo Elena além da história e expressão integral do perigoso mito ocidental: Narciso. Na sua busca, ela só é capaz de se ver e rejeita quaisquer tentativas do outro de reivindicar seu amor. Narcisa rejeita Eco e todo o pano de fundo é um eco latejante, um tênue fluir de luzes e ruas e casas. Ela dança sozinha, se move para dentro de si ajudada por uma corda. Não há conversas cara a cara nem com a mãe nem com a irmã, apenas a narrativa de Petra e os close-ups da mãe. Vejo as três mulheres como uma só. Vocês, o público, são as três mulheres e eu também ao ver Elena encontrar a sua imagem, se encontrar nas águas em que mergulha. Somos todos tempo das águas. Espelhos e o acasalamento são abomináveis, escreveu Borges, pois multiplicam o número de homens e mulheres. E Petra nos mostra como somos todos um e iguais. Elena se encontra em sua imagem, na sua imagem dançante, em seu triste retrato. Ela finda, inexoravelmente, se realizando no suicídio ao juntar-se ao tempo como fluir das águas. É uma consumação a ser desejada devotamente: morrer, dormir.

Vi e continuo a ver Elena (o filme é o personagem) como autêntica visão de nossa mortalidade. La derrota– mais uma vez cito Borges– tiene una dignidade que la ruidosa victoria no merece. A derrota tem uma dignidade que a ruidosa vitória não merece.

Por último, mas não menos importante. Este é um filme onde a mulher é universal e não o homem. Os homens tiveram séculos para representar a condição humana. Agora é a vez da mulher ter uma oportunidade de cometer seus próprios erros. Aguardo ansioso o novo século dela. Embora, com 83 anos, eu não possa ver muito mais. Os homens na Elena de Petra são pedras. Fazem apenas curtíssimas aparições– o pai e, imagino, o namorado. Close-ups estáticos.

Espero que Elena receba em Nova York o reconhecimento que a eludiu em vida.

 

Leia a íntegra do discurso de Edmundo Desnoes (no original, em inglês):

Most literature and films are polysemic, have several possible readings. I have experienced ELENA from both a historic and a narrative perspective.

The visual documentary illusion is just the form, the appearance of what I find to be a quest for identity and inner meaning. The life of the narrator is just a diving board from which Petra takes a leap to reveal the search for Elena as she twists and turns in the air and plunges into the waters of being a woman in the twenty-first century.

Latin American cinema has been historically, with rare exceptions, too heavily loaded on the expression of outward reality; on too much social realism, folklore and crude surfaces. Pretending to reveal our predicament in the sound and fury of our aspirations and social behavior. In Brazil from the films of Glauber Rocha to City of God. Even my close friend Titón couldn’t avoid a Cuban tragicomic journey in Guantanamera. They might be classic films but create a lopsided vision of our continent.

Petra Costa has turned away from the sound and fury, turned inward to explore our subjectivity, delved into the waters of our consciousness, on our need for an individual, personal identity. Elena emerges from the womb of her socially committed parents. She even uses documentary footage to state her origins and then turns away from the collective to explore the individual. The rest of the film is a desperate need for the expression of the self. We suffer from too much Don Quixote in his absolute certainty, and too little from the doubts and ambiguity of Hamlet. Elena is a film that attempts to restore the much needed balance in Latin America between the outward expression and the inward quest.

Now I will explore why I see Elena beyond history and an integral expression of a dangerous Western myth: Narcissus. In her quest she is only able to see herself and rejects most attempts by the other to claim her love. Narcissa rejects Echo and the entire background is a throbbing echo, a tenuous stream of lights and streets and houses. She dances alone, moves into herself aided by a rope. There are no face to face conversations with either her mother or her sister, only the narrative of Petra and the close-ups of her mother. I see the three women as one. You, the audience, are the three women and so am I as I watch Elena find her image, find herself in the waters into which she plunges. We are all water time. Mirrors and coupling are abominable, Borges wrote, because they multiply the number of men and women. And Petra shows we are all one and the same. Elena finds herself in her image, in her dancing image, in her sad portrait. She ends, inexorably, fulfilling herself in suicide by joining time as water flowing. It is a consummation devoutly to be wished: to die, to sleep.

I saw and continue to see Elena (the film is the character) as an authentic vision of our mortality. “La derrota” – once again I quote Borges – “tiene una dignidad que la ruidosa victoria no merece. Defeat has a dignity that noisy victory does not deserve.”

Last but not least. This is a film where woman is universal not man. Men have had centuries to represent the human predicament. Now it is woman’s turn to have an opportunity to make her own mistakes. I’m looking forward to her century. Although at age 83 I will not be around to see much. The men in Petra’s Elena are piedras, stones. They only make very short appearances – her father and her, I imagine, boyfriend. Static close-ups.

I hope Elena receives in New York the recognition that eluded her during her life.



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