Diário filmado

por: Renato Tardivo – blog Amálgama – 13/6/2013

Muito se tem falado de Elena, de Petra Costa, documentário que reconstrói a história da personagem-título, uma jovem atriz precocemente morta e – detalhe da maior importância – irmã mais velha de Petra, diretora do filme. Em que se pesem opiniões mais ponderadas ou mesmo declaradamente negativas, não são poucas as impressões favoráveis que o filme tem recebido. Interessado pelo tema, não li as críticas e evitei conversar com quem tivesse assistido ao documentário. Procurei, assim, me despir de expectativas e preconceitos. Confesso, no entanto, que entrei na sala de cinema esperando um filme no mínimo mediano.

Ao fim concluí que era muito ruim.

A primeira parte é a menos problemática. Nela, há o resgate de um pouco da história da família de Elena, com destaque para a própria, a partir de imagens da infância e de fitas-cassete em que, já adulta e sozinha em Nova Iorque, Elena gravava as cartas à família (pois tinha vergonha da sua letra – letra que mais tarde aparece no filme). Como não teve oportunidade nos EUA, ela retorna ao Brasil. Mas, meses depois, recebe a notícia do aceite em importante universidade de Nova Iorque, onde cursaria artes cênicas. Dessa vez mudam-se para lá Elena, a mãe e Petra, à época com 7 anos. Nesse momento, começam a surgir flashes de certa melancolia em Elena, até então, pelo que o documentário havia mostrado, uma criança criativa e uma jovem atriz de talento.

Mas, a partir daí, o filme se perde quase que por completo. A tragédia em torno da morte de Elena é reconstruída pelos resíduos de memória de Petra e, também, pelo depoimento da mãe. O documentário recupera os laudos médicos e policiais. O pai de Elena quase não aparece. Quase nada da família aparece. Ora, a proposta é documentar a vida de Elena pelos olhos da diretora, sua irmã; trata-se, portanto, de uma história pessoal. Petra faz a narração, recurso excessivamente utilizado (mas necessário, considerando-se a proposta). Ocorre que, além de explorar muito pouco (ou nada) a mente misteriosa de Elena (estritamente relacionada com as circunstâncias de sua morte) e documentar quase nada da família, Elena não é sobre Elena. O filme é sobre Petra. Que parece procurar a si mesma na sombra petrificada da irmã morta, a quem se dirige, mas não tem condições de assumir essa condição.

Nessa medida, do meu ponto de vista, o filme é um diário em linguagem audiovisual, uma conversa solitária de alguém que ainda não tem projeto a mostrar. Falta o básico. O projeto não chega a ser mal executado: simplesmente não é arte (mesmo documental). Para sê-lo, a cineasta precisaria assumir a condição de artista (e não apenas de irmã); precisaria cutucar feridas da própria família (que irritantemente preserva); precisaria ao menos conhecer a própria letra.

(Recordo-me, a propósito, de Santiago, magistral documentário de João Moreira Salles, no qual também se trata de reconstruir pelo afeto a vida de um personagem. E o cineasta levou anos para concluí-lo, o que só foi possível ao se debruçar criticamente sobre o filme que não pôde fazer anos antes e sobre si mesmo. Tarefa de gente grande.)

Imagino que a família tenha – com justiça – se emocionado muito. Suponho, também, que as opiniões favoráveis, além do sentimentalismo que o grande público procura, digam respeito a identificações muito particulares. Mas, genuinamente, qual não é? – podem me perguntar. Ocorre que a boa obra de arte é aquela que, ao suscitar as mais variadas identificações, se universaliza. Transcende o seu tempo. Permanece. E Elena, ao contrário, é particular ao extremo. Narcísico.

É verdade que há planos bonitos – a dança com a lua, filmada pela própria Elena, e a sequência do fim com as mulheres na água, principalmente. Além disso, alguns recursos, tais como o áudio e imagens do passado na primeira parte, tomadas de textos e da letra de Elena e planos sinestésicos por vezes funcionam. Mas, longe da supervalorização por parte de alguns, creio que isso apenas livra o filme de um desastre maior. Resta torcer para que Petra Costa possa, em futuro próximo, se alimentar de todo o amor represado em Elena para criar uma obra. Que se abra para o outro.

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