ELENA – um sensível veículo de estudo social

por: João Marcos Flores – site Cineviews – 17/5/2013

Elena é o filme que Émile Durkheim teria escrito se fosse roteirista de Cinema: se propondo a investigar a triste história de uma bela jovem brasileira que, após uma série de tentativas frustradas de se estabelecer como atriz em Nova Iorque, mergulha em uma profunda depressão que a leva a cometer o chamado “suicídio egoísta” pregado pelo sociólogo francês, o documentário não se limita a seguir os passos de sua personagem-título em busca de respostas que possam oferecer aos sobreviventes de sua tragédia subterfúgios a serem usados como consolo, retratando também o rastro de destruição deixado por seu ato derradeiro, que não apenas motivou sua irmã Petra a dirigir, vinte anos depois, este que é seu primeiro longa-metragem, como transformou para sempre sua personalidade e visão de mundo.

Repleto de imagens casuais, mas capazes de levar o menos sensível dos mortais às lágrimas graças ao conhecimento do triste destino que a vida reservaria à personagem-título, o longa já tem início de forma arrebatadora ao apresentar Elena como uma adolescente alegre e cheia de vida, apaixonada pela dança e pelas artes cênicas e cujo carinho demonstrado pela irmã recém-nascida revela um comovente instinto maternal que ela jamais teria a chance de manifestar em toda a sua plenitude. Dona de um sorriso lindo e de uma espontaneidade que fica mais do que evidente durante a gravação de uma de suas entrevistas com agentes norte-americanos (e que sua irmã Petra acerta em permitir que acompanhemos por mais tempo que qualquer outra fita de arquivo utilizada ao longo de toda a projeção), Elena tinha tudo para conquistar o mundo com sua meiguice e carisma, mas, de repente, foram as circunstâncias que acabaram roubando gradativamente sua identidade, até digerir também sua alma.

Como investigação psicológica, aliás, o filme se beneficia enormemente do fato de ter uma pessoa tão próxima à personagem retratada por trás de seu processo de criação; afinal de contas, se um cineasta menos envolvido com Elena poderia facilmente ceder à tentação de julgá-la como uma pessoa fraca ou “sem fé”, Petra Costa se esforça, à sombra de Durkheim, em buscar explicações para a decisão extrema tomada pela irmã nos códigos, convenções, limitações e imposições feitas pela sociedade na qual ela viveu, chegando à conclusão (se a alguma) de que nada pode causar dor maior que a privação daquilo que nos define como seres humanos – um golpe tão cruel que pode transformar a simples existência em um fardo pesado demais para ser carregado (e, em última análise, não há motivos para julgarmos a interpretação como uma “essência” menos válida que a realização profissional em qualquer área, a construção de um núcleo familiar ou mesmo a possibilidade de amar e ser amado reciprocamente).

Nesse sentido, Elena acaba funcionando também como um sensível veículo de estudo social: o que explica, por exemplo, o fracasso de Elena como atriz? Ao que parece, talento e carisma não lhe faltavam, como podemos ver nas breves cenas em que a observamos interpretar números cênicos nos palcos e em programas de TV e ouvir através de relatos de seus antigos colegas; mas, então, por que motivos as portas simplesmente não se abriram, impedindo que ela exercesse o papel que nascera para interpretar? Ainda que o longa não se aprofunde nessa vertente, a conversa de Elena com a agente americana acaba funcionando como uma triste exposição dos preconceitos profundamente enraizados em nossa sociedade, já que, independente das alusões ao fechamento do mercado cinematográfico brasileiro pelo ex-presidente Collor em 1990, é no mínimo estranho que a garota precisasse gastar suas entrevistas inteiras explicando os motivos pelos quais não voltava para o seu país ao invés de lutar por um lugar ao sol na América do Norte.

Infelizmente, a imaturidade de Petra Costa como diretora acaba prejudicando consideravelmente o seu filme, eclipsando a tristeza genuína produzida por boa parte da projeção com maneirismos afetados e “forçações de barra” melodramáticas (a própria decisão da diretora de narrar o longa em off com uma voz excessivamente reflexiva e semelhante à de Elena depõe contra o impacto causado pelas imagens de arquivo) e ocasionalmente tirando a narrativa dos trilhos e entregando-a a imagens desfocadas, embaçadas com vaselina e expostas a forte contraluz, que, julgando-se oníricas, surgem apenas deselegantes e de mau gosto. Além disso, a cineasta acaba demonstrando uma necessidade excessiva de desviar o foco do longa para o seu próprio umbigo, incluindo uma cena em que sua versão infantil canta enquanto toma banho (e que, trazendo Elena apenas atrás da câmera, poderia muito bem ter ficado no chão da sala de montagem) e diversos planos em que ela mesma é vista andando pela cidade de Nova Iorque, só para citar dois exemplos.

O que é uma pena, já que, na tentativa de reacender a chama de Elena, a cineasta acaba revelando muito mais sobre si própria, transformando o processo de procurar respostas sobre a irmã em uma viagem de autoconhecimento, purificação e exorcismo de deus próprios demônios. O que Petra parece não perceber, porém, é que as “verdades” sobre sua própria identidade surgem da espontaneidade de momentos como aquele em que ela se questiona, atormentada, sobre cada detalhe envolvendo a noite do suicídio (“Você fica o dia inteiro sozinha em casa. Fazendo o quê? Falando com quem?”), e não de artifícios intencionalmente criados com este objetivo, como a narração em offque constantemente traz comparações entre ela e a irmã ou as confissões acerca de sua própria depressão (“Quando eu me olhava no espelho, não via nada por trás de meus olhos”).

O que não quer dizer, é claro, que o tom ocasionalmente panfletário – e mesmo sensacionalista – empregado por Petra em certos momentos da projeção destrua o seu impacto; e nem discutirei assuntos extra-filme, como a forte campanha de marketing feita pela distribuidora do filme, que incluiu shows, coquetéis e eventos de gala para promover um filme que fala de um assunto tão sério e digno de respeito. Afinal, a honestidade do retrato feito porElena e as infinitas – e profundas – reflexões geradas pelo longa são fortes demais para serem diminuídas por pequenos tropeços ao longo do percurso.

 

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