Educação para a morte

por: Cláudia Riolfi – IPLA – 22/6/2013

 

Incluir a morte no psiquismo das crianças as libera para a vida, tornando-as mais livres, leves e criativas

Não basta ser mãe, tem que participar. Assim, quando sua filha lhe diz que precisa assistir tudo o que sair de cinema nacional ao longo de 2013 para se preparar para o exame vestibular – ela quer ser cineasta – você nem pisca: compra os tickets. Foi assim que acabei parando, com a família inteira, no documentário Elena, de Petra Costa, produção que, muito provavelmente, não teria assistido sem essa motivação amorosa. Elena, que desde os 15 anos trabalha profissionalmente como atriz, transformou um trauma de infância em um filme “de menina”: delicado, velado, vagamente confuso.

A história, autobiográfica, é simples. Um casal de militantes tem uma filha em pleno golpe militar no Brasil. A menina cresce na clandestinidade. Por ocasião da abertura política, nasce uma segunda filha, no caso, Petra, a diretora. Elena, com treze anos, faz de Petra sua boneca. Petra a idolatra. Os pais se separam dois anos depois. Quando Elena tem vinte anos e Petra vai fazer sete, a mãe e as duas filhas estão morando em Nova York, para que a filha mais velha possa estudar teatro. Incapaz de sustentar seu talento, Elena se mata. Petra leva três anos para entender que a irmã mais velha não voltaria mais. Quando cresce, resolve fazer o documentário para encontrá-la e, consequentemente, poder esquecê-la.

Resumindo: Petra Costa nos mostra que foram preciso catorze anos para que, despedaçada, morta de medo de vir a se matar tal qual a sua irmã, ela pudesse, minimamente, incluir a morte em sua vida. As últimas frases após essa inclusão são tocantes. Petra diz à Elena, sua irmã morta: “Você é minha memória inconsolável, feita de pedra e de sombra. E é dela que tudo nasce. E dança.”.

Eu gostei do documentário, meus filhos não. O caçula, em especial, tão logo saiu da sala de cinema, decretou: “O que faltou para a pequena Petra foi que a mãe ou o pai dela a fizesse ver o vídeo da tia Penha. Uma vez só que ela assistisse o vídeo, as produções dela teriam sido menos doloridas, para ela e para a gente”.

É uma hipótese para se considerar… O vídeo em questão é um trecho de um stand up do comediante Marcelo Médici, encarnando tia Penha, uma apresentadora de programas infantis que é chamada para substituir a tia Loira, que pegou meningite.

A morena tia Penha é a antítese do que socialmente costumamos esperar em programas infantis. Suas frases são impagáveis. Tia Penha não gosta de crianças. Tia Penha gosta de dinheiro. Tia Penha tem visível preferência pelas crianças que estudam em escolas caras. Em poucas palavras, ela não doura a pílula.

O ápice do show – parte que, na avaliação do meu filho teria sido terapêutica para a Petra menina – é o momento em que Médice apresenta um comentário da canção “Cinco patinhos foram passear”, da apresentadora Xuxa. A letra é feita de estrofes que se repetem com pequenas variações. Não difere de algo como: “Além das montanhas/ Para brincar/ A mamãe gritou: Quá, quá, quá, quá/ Mas só quatro patinhos voltaram de lá”. Após cantá-la, Tia Penha comenta: “Vocês sabem por que o patinho não voltou? Ele morreu. Aliás, o papai vai morrer, a mamãe vai morrer, o amiguinho vai morrer, você vai morrer. Quem morre não volta mais”.

Poupar as crianças de informações a respeito da morte não as ajuda ao se encontrarem com a vida. Sem a certeza de que vão morrer, as pessoas não se sentem vivas. Perdem-se. Ouçamos a sabedoria dos mais jovens e encontremos um jeito de aplicar a terapia da Tia Penha neles. Não basta ser mãe. Tem de estar pronta para poder não ficar para semente.

Claudia Riolfi é mãe da Laura e do Domenico. Psicanalista, cursou pós-doutorado em Linguística na Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis. Professora na Faculdade de Educação na Universidade de São Paulo. Diretora Geral do IPLA

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