E se o que Elena deseja ainda não tiver nome? –

Por Flávio Ricardo Vassoler – colaborador do Portal Heráclito

Quando o Príncipe Míchkin, protagonista do romance “O idiota”, vaticina que “a beleza salvará o mundo”, leitores apressados e/ou detratores da obra do bom e velho Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski tendem a lhe atribuir laivos inequívocos de idealismo e ingenuidade — como se o criador do homem do subsolo (“Memórias do subsolo”) e de Raskólnikov (“Crime e castigo”), de Nastácia Filíppovna (“O idiota”) e Kiríllov (“Os demônios”), de Hippolit (“O idiota”) e Ivan Karamázov (“Os irmãos Karamázov”) não conhecesse a intrincada via crucis para a cicatrização do espírito humano.

Na verdade, a beleza a que Míchkin se refere diz respeito ao (re)encontro do estético com o ético. Ora, se concebermos a ética como o conjunto de valores e ideais que partilhamos (ethos), a redenção do ético pelo estético só pode se dar pela cicatrização so-ci-al do ethos. Nesse caso, o suposto quietismo ingênuo de Míchkin se transforma em um libelo contra o choro e o ranger de dentes historicamente (re)produzidos.

E eis que, lá pelo início da “Teoria do romance”, o bom e velho György Lukács, antes de sua conversão ao marxismo eclesiástico, propõe uma tipologia para compreendermos a interação das personagens com o mundo. Assim, há personagens que só fazem sofrer com temores e tremores, personagens que se sentem inequivocamente acossadas pelo colosso do mundo, personagens que não conseguem carregar sobre os ombros esguios aquilo que um poeta itabirano padeceu como o sentimento do mundo. (Os leitores d'”A metamorfose”, do bom e velho Franz Kafka, logo vão se lembrar do fatídico quarto-cárcere de Gregor Samsa.) Por outro lado, há personagens que parecem engolfar o mundo, personagens cuja inadaptação aos valores e ideais vigentes apontam não para um problema propriamente individual, mas para as profundas aporias do atual estado de coisas. Voltemos a mencionar, então, o Príncipe Míchkin. [Antes que alguém acuse o jovem Lukács da “Teoria do romance” de simplificação do caos do mundo — acusação que o próprio Lukács, a posteriori, transformaria em autoacusação em um longo prefácio revisionista –, podemos considerar esses dois tipos ideais (personagens menores e personagens maiores do que o mundo) como as balizas extremas em meio às quais haveria uma série de personagens radicalmente híbridas. A crítica ao jovem Lukács, a bem dizer, deveria se voltar aos limites do pensamento tipológico, dicotômico — e não dialético.]

Pois muito bem: a mineira Petra Costa, diretora e pessoa/personagem do filme “Elena” (2012), nos apresenta sua irmã mais velha, a atriz sonhadora e sequiosa que dá nome ao documentário ao longo do qual a tese da ficção e a antítese da realidade, umbilicalmente narradas, dão vazão à belíssima síntese da realidade ficcional.

Elena é muito maior do que o mundo. Eu imagino o momento em que Elena, potencial leitora de Clarice Lispector, entreviu seu espírito nu quando a escritora lhe sussurrou que “o que eu desejo ainda não tem nome”.

Diferentemente daquilo que o ethos burguês dos EUA apregoa — Elena vai a Nova Iorque para tentar se tornar atriz de cinema –, não conseguir viver de e em sua arte, para a irmã de Petra Costa, não significa ser uma “loser”; para muito além da corrida de cavalos a que o capitalismo nos coage, não conseguir viver de e em sua arte significa, para Elena, a impossibilidade de (tentar) trazer à tona todo o turbilhão anímico que, depois da nossa expulsão do Éden de Neverland, somos obrigados, com a boca torta pelo ressentimento, a chamar de “sonhos”.

Com uma voz algo rouca e um sotaque bem mineiro que dão ainda mais compasso (e feitiço) poético(s) à narração, Petra Costa como que nos conta que a impetuosa Elena, uma vez ultrapassada a fronteira do desejo, já não podia voltar ao quarto-cárcere de Gregor Samsa.

Para Elena, apenas a beleza salvaria o mundo.

Mas, ora, é preciso saber — saber contra os próprios sonhos — se o mundo está disposto a salvar a beleza.

Tataraneta de Zaratustra, Elena encarna a noção de que a maturidade do adulto só se alcança com a recuperação da seriedade da criança ao brincar. Assim, Elena leva às últimas consequências um aforismo-só-lâmina do bom e velho Oscar Wilde, para quem todos aqueles que vão abaixo da superfície o fazem por sua própria conta e risco.

Os leitores de “De Profundis” sabem o que, ao fim e ao cabo, acontece com Oscar Wilde.

Os leitores de “O idiota” sabem para onde a via crucis do cristão Míchkin o leva, quando o dostoievskiano tenta conciliar a tese do perdão ao assassino com a justiça para com a assassinada.

Aqueles que acompanharem a cadência mineiro-poética da narração de Petra Costa descobrirão por que a máscara grega de Elena é o rosto da tristeza.

“Elena” é não apenas uma profunda investigação sobre a natureza do belo — o belo não cicatrizado, o belo que faz a memória doer. “Elena” é a consecução do sonho da mãe de Elena; “Elena” é a realização do sonho de Elena; “Elena” é a cura que a diretora e pessoa/personagem Petra Costa propõe à inquieta Electra — aquela que, ao fim e ao cabo, acaba engolfando sua amada irmã. (Um espectro ronda “Elena”, o espectro do Dr. Freud.)

 

Flávio Ricardo Vassoler é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com estágio doutoral junto à Northwestern University (Evanston, EUA). É autor das obras literárias O Evangelho segundo Talião (nVersos, 2013) e Tiro de Misericórdia (nVersos, 2014) e organizador do livro de ensaios Dostoiévski e Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012).

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