Pedro Freitas, no blog Blah Cultural – 17/5/2013
Heidegger escreve em seu livro “O que se chama pensar?”*1: “Mnemósina, a filha do Céu e da Terra, se torna, como esposa de Zeus, durante nove noites a Mãe das Musas. Jogo e Musica, Dança e Poesia pertencem ao seio de Mnemósina, à Memória. É claro que este termo designa outra coisa que a única faculdade, determinável pela psicologia, de reter o passado na representação. Memória pensa naquilo que tem de ser pensado (…) Memória é o recolhimento do pensar fiel (…) Memória, a Mãe das Musas! O pensar fiel àquilo que demanda ser pensado é no fundo de onde soa a poesia*2. A poesia é então as águas, que por vezes escoam às avessas em direção à fonte, em direção ao pensar como pensar fiel”.
As imagens que introduzem e finalizam o filmeElena são de mulheres boiando em um rio, levadas pelas correntezas sob o som de Turn to Water de Maggie Clifford. A letra da música, inspirada num trecho de uma novela de Guimarães Rosa, diz “Estou doente/Estou doente/Estou doente de amor/Toque-me/ Toque-me /Eu viro/Eu viro água” (em uma tradução livre). Se, no começo, vemos a diretora neste rio que, como diz a música, é ela mesma em seu amor, em sua poiesis a desembocar em sua origem, em suas memórias, de onde desabrocha o filme, criação dela, no final, descobrimos no rio tantas outras mulheres, em busca de suas origens, de suas Elenas. Assim, como criação anamnésica, o filme não pode ser preso à classificação de documentário e nem de ficção, estando muito mais na vida sua definição, na procura por identidade de sua autora.
Ela, Petra Costa, nos leva a desvendar a ela mesma, através de sua busca pelos caminhos da irmã. Para tanto, a diretora faz uma construção intimista e poética, utilizando-se da linguagem cinematográfica da forma mais própria a esta possível, em uma aproximação ao movimento do Cinéma Pur, e vai criando a si mesma, à medida que cria sua irmã e o filme. As imagens e os sons de arquivo são conectados, sobrepostos e ligados às imagens e sons atuais de forma poética e “puramente” cinematográfica.
Através de sua voz, a autora nos guia, não pela descrição do que devemos ver, mas pela conversa que ela tem com sua irmã, presente nela. Nesta construção pessoal, cada palavra direcionada a Elena nos apresenta uma irmã mais nova, a diretora, que procura a si mesma como uma não-Elena. Procura-se nas palavras de sua irmã sobre ela Elena, sobre ele Petra e sobre a vida; nas palavras de seus pais; nas impressões que tem de sua irmã-memória, sua Elena…
A composição de imagens em planos fechados que buscam cada detalhe da pele, como se querendo mostrar o que as personagens não estão revelando, suas emoções contidas e seus desejos, nos colocam em seus universos particulares; a câmera na mão, que percorre as pessoas e as ruas em busca de algo que não podemos definir claramente, algo que ficou e se perdeu, e existe como sombra dá própria diretora nos caminhos de sua irmã, num misto de presente e passado, de confusão indentitária, é uma câmera que se perde com e como a autora. Imagens que contrastam com as de arquivo, estas preocupadas com o registro de situações, mostrando algo que está lá, achado no passado e que montam uma memória imagética fora de Petra Costa, mas que são poeticamente tomados por ela ao se chocarem com suas memórias. É nesse hiato do passado com o presente que somos mergulhados, nessa busca incessante de autoconstrução, de identificação.
Porém, se o filme é o ato criador na memória, se se constitui como poiesis através de sua origem, ele erra quando tenta ser maior que a memoria, quando tenta recriar ao invés de criar (que fique claro que não se trata de uma criação de algo novo para a linguagem do cinema, se trata de criação quanto ao próprio filme). Algumas tomadas são preenchidas por um efeito de blur, forçando nosso olhar para uma parte muito pequena do quadro, numa composição que parece querer gerar o mesmo efeito de profundidade de campo de outros planos. Nestes, a exuberância do que se escolheu para estar em foco cria uma intimidade, engradece o filme em seu objetivo, como apontado no parágrafo anterior, o efeito do outro, por outro lado, forçado e artificial, quebra toda essa mágica do detalhe e nos denuncia um desejo de criar que não se efetiva no plano. Algumas reconstituições artificiais de imagens, como essa, não constroem o filme. Exemplo disso é quando, já para o final, entramos em uma festa. Esta soa tão artificial, perante a força das outras imagens construídas, que grita diante nossos olhos, denunciando uma tentativa inócua de atingir uma verdade sobre um momento da vida de Elena, numa busca por entender o que se passou com ela, que sobrepõe a memória como fonte de poiesis e, por isso, se anula como criação. Felizmente essas imagens e situações são poucas e rápidas, não interferindo na estética da obra de forma muito significativa.
A obra é, por fim, um relato de coragem, que não tenta ser a sua resposta definitiva, mas a constituição de uma obra pessoal, universalizada pelo sentimento de perda compartilhado na personagem viva de Elena, viva por seus fragmentos reminiscentes nos outros, fragmentos que nunca abandonaram Petra Costa, pois são também ela. Elena é um filme de descoberta, na criação de si mesmo, é um filme identitário.
*1 Tradução de João Cardoso de Castro, em http://www.filoinfo.bem-vindo.net/filosofia/modules/AMS/article.php?storyid=46*2 Poesia aqui entendida como poiesis, o próprio fazer criador, a transformação da matéria.
BEM NA FITA: A construção poética a partir da memoria, o uso “puro” da linguagem cinematográfica e a transformação de um assunto particular em universal.
QUEIMOU O FILME: Planos e cenas em que a memória deixa de ser origem de criação e vemos imagens forçadas e/ou falsas, não compondo a obra.
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