Em ELENA e O Som Ao Redor, memórias de um passado político

Força e Significados: perseguições políticas em dois filmes brasileiros recentes

O Som Ao Redor (2012)

Kleber Mendonça Filho

ELENA (2012)

Petra Costa

Por Kristi M. Wilson*

Publicado originalmente pelo Latin American Perspectives

Tradução: Lucas Hackradt

Infância na clandestinidade: Elena era a mascote da Universidade Estadual de Londrina (UEL), durante a campanha eleitoral da chapa Poeira para o DCE-UEL

Infância na clandestinidade: Elena era a mascote da Universidade Estadual de Londrina, durante a campanha eleitoral da chapa Poeira para o DCE-UEL

Segundo Avery Gordon, perseguições sociais podem ocorrer de diferentes maneiras – desde o desaparecimento de artefatos pessoais à ruína de material de arquivo ou a pessoas vivendo vidas inteiras com constante medo de repressão ou desapropriação. Dois filmes brasileiros de 2012, O Som Ao Redor (dirigido por Kleber Mendonça Filho), e ELENA (dirigido por Petra Costa), exploram essa ideia das memórias e fantasmas do passado político. Esses filmes representam a colisão entre a força do passado e seu significado nos dias presentes através de uma série de observações históricas e fatos recorrentes no Brasil que impactam as relações de raça, gênero e classe no país e falam sobre o abismo criado pela desigualdade social que persiste através dos tempos. O Som Ao Redor foi exibido no Latin American Studies Association film festival de 2013

O Som Ao Redor explora a violência atual e histórica na região metropolitana de Recife, uma área altamente urbanizada atualmente, mas cujo passado esconde uma história dolorosa de escravidão e barões do açúcar. ELENA é um documentário poético sobre a perda, as memórias e o exilo (tanto de seu país quanto de si próprio). Nascida durante a época de perseguição militar, Petra usa material de seu acervo pessoal, como diários, vídeos caseiros e gravações de voz para conjurar a memória inconsolável do suicídio de sua irmã em Nova York.

Aludindo ao próprio título, O Som Ao Redor começa com uma tela preta e vários sons ambientes (carros, pássaros, o vento, passos) seguidos por uma séria de fotografias em preto e branco de um canavial. As fotos de crianças e trabalhadores do campo agrícola dão espaço para um cenário urbano atual em que um jovem garoto pedala em sua bicicleta dentro de um estacionamento de um prédio de luxo e é seguido por uma garota de patins. As fotografias das crianças no canavial são substituídas por crianças de hoje junto a suas babás em um playground. O som de metal sendo soldado por um trabalhador atrai a atenção dessas crianças. Já em outra cena, uma mulher dentro de seu apartamento não consegue dormir por causa do cachorro de seu vizinho. Assim, ela embrulha um pedaço de carne e o joga pela janela, esperançosa de que o cão pare de latir. Os protagonistas do filme são uma família rica (cujo patriarca, Seu Francisco, é dono de metade das propriedades na cidade), seus vizinhos e um grupo de seguranças. A riqueza de Seu Francisco vem do canavial mostrado no início do filme e a herança mantém-se na família através dos incontáveis arranha-céus que se levantam em Recife.

Cena do filme O Som Ao Redor, de Kleber Mendonça Filho

Cena do filme O Som Ao Redor, de Kleber Mendonça Filho

João, herdeiro de Francisco, é um jovem que acaba de voltar de uma temporada de sete anos na Alemanha. Ele é a pessoa mais simpática da família e detesta seu trabalho como gerente de uma corretora (que aluga apartamentos com sistemas de segurança sofisticados). Ele rapidamente se apaixona por uma moça chamada Sofia, que cresceu em uma das casas de Seu Francisco. Clodoaldo Pereira dos Anjos, um misterioso segurança, faz o paralelo com João como um protagonista mais sinistro. Ele e sua equipe de seguranças privados parecem surgir do nada, sempre no momento oportuno, para livrar Recife de seus crimes hediondos ao garantir proteção e “paz de espírito”. Clodoaldo faz a patrulha das ruas em troca de pequenas “colaborações financeiras” e das chaves de diferentes casas e apartamentos. Com isso, ele se aproveita para usar os espaços como locais para seus encontros sexuais com as empregadas domésticas de seus clientes – algo que constitui o maior medo da classe média urbana ao demosntrar o quão difusas são as divisas entre as classes.

O Som Ao Redor é a história da crescente onda e ênfase nas questões de “segurança” em muitas cidades latino-americanas, principalmente da preocupação com crime, insegurança e crescente desigualdade social, algo em parte herdado pela manutenção das riquezas através de gerações. As classes ricas e pobres convivem lado a lado em muitas cidades do continente, ao passo que casas tradicionais e mais simples são destruídas para dar lugar a prédios gigantescos. É notável a rápida expansão urbana em cidades como Buenos Aires, Lima e Cidade do México. Ao ambientar o filme em Recife, Mendonça Filho permite explorar as relações entre a classe alta contemporânea, a exploração colonial, o patriarcalismo e a grilagem de terras.

A trilha do filme consiste de barulhos como o de insetos, de campainhas, televisões, passos e do tráfego. A tensão é construída através de diferentes níveis de volume e velocidades desses sons, assim como através de pequenos atos de vingança social que se conectam ao tema central do filme – segurança – e impulsionam a narrativa em direção a revelações sobre as sementes da violência e do ressentimento. Uma dona de casa frustrada, por exemplo, tenta envenenar o cachorro de seu vizinho; um flanelinha risca o Audi de uma mulher rica que se recusa a lhe dar atenção; um membro de uma das famílias ricas da cidade passa seu tempo quebrando as janelas de vários carros… O tópico da criminalidade começa a ficar mais obscuro quando, na terceira parte do filme, as histórias da família começam a se misturar.

Água em sangue: memórias da escravidão

Água em sangue: memórias da escravidão

Os pesadelos formam uma importante parte da narrativa do filme sobre medos e insegurança. Em uma elaborada sequência, João leva Sofia para visitar o canavial de seu pai. Eles visitam a Casa Grande, o moinho abandonado e ruínas do que fora um cinema. Eles passam por um local onde diversas crianças, que ainda vivem no canavial, tomam banho em uma cachoeira. João acorda – não passara de um sonho! – quando as águas da cachoeira se tornam sangue, evocando memórias dos tempos de escravidão. Em outra cena, uma jovem sonha que sua casa está sendo invadida por centenas de pobres anônimos, que pulam o muro de seu quintal no meio da noite. Os pesadelos tornam-se realidade no final do filme quando o legado de violência colonial se torna visível. O irmão de Clodoaldo aparece no final do filme convertendo a estrutura narrativa da história, que até então parecia solta, em uma história de vingança de proporções odisséicas.

O documentário de Petra Costa, ELENA, também lembra uma tragédia grega ao enfatizar o drama intergeracional. Close-ups de girinos na água misturados à trilha por The Shirelles “This is Dedicated to the One I Love” assemelham-se a filmes de David Lynch e já mostram ao espectador que esse não será um documentário padrão ao qual está acostumado. O filme de Petra foi comparado a outros documentários reflexivos, como Capturing the Friedmans (2003) de Andrew Jarecki e Tarnation (2003) de Jonathan Caouette, em que os protagonistas crescem em ambientes cheios de câmeras, filmes caseiros e gravações pessoais. O documentário Los Rubios (2003), de Albertina Carri também salta à memória, uma vez que ambas são filhas de ativistas durante as ditaduras militares na Argentina e no Brasil e ambos os filmes são sobre algo que Elizabeth Jenin chama de “campos minados da memória”. E ainda assim há algo de extremamente poético e ilógico na decisão de Petra de voltar a Nova York (lugar de suicídio de sua irmã) não para lembrar-se de Elena, mas para esquecer-se dela. Petra e Lynch escolhem caminhos que vão à profundidade máxima do abismo emocional que é a perda; caminhos esses que não necessariamente levam a resoluções pessoais positivas no final. As memórias inconsoláveis são o que ficam para que o público reflita sobre a meditação que costa faz sobre política, estar exilada e identidade.

Em Nova York, Petra busca por Elena

Em Nova York, Petra busca por Elena

O exílio forçado não é parte do tema central desse filme, ainda que a diretora tenha nascido em uma época em que ativistas desapareciam no Brasil e sua família tinha que viver em esconderijos. O exílio é mais um estado de espírito e da própria existência em Elena. Elena, que abandona uma carreira relativamente segura e de sucesso no Brasil para seguir seu sonho de ser atriz famosa em Nova York – e sua mãe e irmã que a seguem quando seu comportamento começa a ser percebido como autodestrutivo. A busca pela arte e pela beleza transforma-se em tragédia quando Elena não consegue lidar com os sentimentos de perda e desapontamento em sua vida. Petra vaga pela cidade tentando reconectar-se com as memórias de sua irmã enquanto que fragmentos dos diários de Elena narram seus desafios artísticos em Nova York.

As cenas mais fortes do filme recontam as últimas horas de Elena através dos olhos de sua mãe. O filme é a trágica história de uma jovem mulher que não consegue atingir o sonho americano. É também uma reflexão sobre o suicídio. Finalmente, é também um conto sobre tristeza e o vazio que nasce com a ditadura militar e é passado de geração para geração. Outras coisas também são passadas de mãe pra filha, como a vontade de Petra de estudar teatro e fazer filmes. Para a diretora que, segundo todos é fisicamente igual à irmã, crescer junto a sua irmã é fonte de medo. No momento em que Petra torna-se mais velha que sua irmã ao morrer, um sentimento de alívio parece pairar sobre a mãe e ela própria.

Tanto O Som Ao Redor quanto ELENA exploram de maneira artística as diferentes formas como o Brasil tornou-se desconhecido – através da obsessão com a segurança e conflitos de classe em Recife; e através das memórias inconsoláveis de uma família que só podem ser reconstruídas no âmbito do exílio.

* Kristi M. Wilson é professora na Soka University of America – Aliso Viejo, Califórnia – Estados Unidos

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