Por Laureci Nunes e Monique Bez, no blog da EBP-SC– 12/9/2013
Ocorreu, no dia 03 de setembro de 2013, no Centro Cultural Badesc em Florianópolis, a exibição do filme Elena, promovida pela EBP-SC – atividade Una das bibliotecas de nossa Escola. Foi uma concorrida sessão de cinema, que deixou muito gente de fora, pois os cinquenta lugares da sala foram rapidamente ocupados.
A exibição da película foi seguida dos comentários dos convidados: as psicanalistas Soraya Valerim e Jussara Bado, e do mestre em Literatura Diego Cervelin; na sequência ocorreu amplo e instigante debate, coordenado por Laureci Nunes, psicanalista e diretora de biblioteca.
Os espelhismos entre as três mulheres e a forma como cada uma foi atravessada pelo vazio vertiginoso foi o ponto de destaque comum aos três convidados. Soraya Valerim iniciou as considerações apontando que Elena, o filme, é um documentário que tem a riqueza de ser um filme dentro do filme, com pedaços de memórias, registros, filmagens, escritos. Foi concebido para fazer de Elena a protagonista, no caminho da realização de um sonho, fazer cinema, mas é Petra, irmã e diretora, quem consegue realizá-lo de fato. Considera que Petra se constituiu especularmente através de Elena, por quem era filmada em muitos momentos de sua infância, e que em Petra o medo do encontro, da fusão só se desfez muitos anos depois, após esta ultrapassar a idade da irmã, quando o espelho quebra. Já sobre Elena ressalta que essa alienou-se na mãe e ali ficou, diante do espelho em que foi desenhada como angústia. Para contornar o vazio de sentido ante a dor, Elena, o filme, põe a falar no limite possível. Conclui que fazer cinema é montagem e corte e é isso que Petra faz: monta para fazer e existir, revivendo Elena para poder enfim dela se separar.
Jussara Bado destaca que o filme começa com Petra contando o sonho, no qual ela se confunde com Elena; lembra que Petra Costa fala desse sonho perturbador em entrevista realizada em junho de 2009. Nele, diz Petra, eu não sabia quem morria, se Elena ou eu. No documentário Petra diz que sua mãe sempre lhe disse que ela podia morar em qualquer lugar do mundo menos em NY, e que podia escolher qualquer profissão menos a de atriz. Jussara considera que esse dito da mãe tomou o valor de um oráculo para Petra, algo que que ela jamais esqueceu. Isso determinou seu caminho, desvios e percalços, fazendo com que dedicasse sua existência para verificá-lo e torná-lo verdadeiro. Considera que o filme se desenvolve mostrando esses efeitos surpreendentes e impressionantes da palavra sobre a vida de um sujeito. Lembra que desde Freud acreditamos nos efeitos da palavra sobre o corpo, e que a descoberta de Freud se ordena em torno de algo que o sujeito não pode nomear. Elena comia, engordava, mas falava de um vazio que continuava. Através de palavras e atos tentava dar conta do que não fazia sentido em sua existência. Elena se depara com o indizível, com o inassimilável pelo significante e desemboca no pior, o suicídio. Já Petra faz do indizível um mistério a ser decifrado. Para a comentadora, “podemos pensar no filme como uma construção, uma trama imaginária e simbólica, tecida como um véu frente ao inominável e ao impossível de suportar do que se revelava como o destino da irmã e que poderia ser o seu. Petra se misturou aí, teceu e desfez nós, até que se separou da irmã e apropriou-se de um destino próprio e singular”.
Diego Cervelin iniciou sua reflexão marcando que “nem tudo o que mostramos se diz, de fato, com as palavras. Mas que nesse hiato de sentido, há algo que fala mesmo sem ser compreendido, há algo que faz ressoar um grito silencioso, mas suficientemente capaz de entrar agudo no ouvido. E dói”. Ele se perguntou: “afinal, como alguém pode suportar o horror das letras pretas assepticamente encadeadas sobre o fundo branco ao dizerem – com um prosaísmo cruel e não menos cortante – que um coração pesa… trezentos gramas? Como alguém pode conviver com a batida extinta desse mesmo coração que até pouco tempo havia sido capaz de conduzir a lua em uma dança evanescente pela imensidão do céu”? Desde a literatura Diego trouxe referências para pensar o recurso da autobiografia, citando Paul Man no texto Autobiografia como desfiguração (1984): antes do registro biográfico funcionar como um gênero, ele trata de uma figura de leitura ou de entendimento que se perfaz através de uma estrutura eminentemente especular[1]. Diego acrescenta que “nesse espelhismo das experiências, nesse entrecruzamento das fantasias e nesse embaralhamento dos fantasmas, o que as imagens apresentam e de fato desdobram são as marcas da perda, da falta, da ausência”. Por isso usa a referência e Man também para situar que mais do que a tentativa de conhecimento confiável de si mesmo, o que a autobiografia demonstra é essa impossibilidade de fechamento e totalização dos sistemas. Citando uma frase do filme “Elena é feita de pedra e sombra”, Diego Cervelin referiu-se ao punctum barthesiano[2](mencionado por Lacan no seminário 11), relacionando-o também ao silêncio do desvanecimento da voz e corpo da mãe de Petra, numa fala em que aquela situa sua dor dilacerante. Cervelin foi levado à lembrar-se também de Clarice Lispector em Um sopro de vida “a invenção do hoje é o […] único meio de instaurar o futuro”[3]e também em Água Viva “o que me sustenta é o ‘aquilo’ que é um ‘it’. Criar de si próprio um ser é muito grave. Estou me criando. E andar na escuridão completa à procura de nós mesmos é o que fazemos. Dói. Mas é dor de parto: nasce uma coisa que é. É-se. É duro como uma pedra seca. Mas o âmago é it mole e vivo, perecível, periclitante”[4]. Para ele o filme tem aspecto dilacerante e delicado.
A partir dessas falas o debate seguiu, incluindo outras questões: a identificação que unia as três mulheres e o excessivo do gozo feminino, que teve como contraponto a pouca expressividade de figuras masculinas, também não passou batido o fato de que a depressão de Elena se apresenta no momento da separação dos pais e que o aparecimento daquele americano (seu pai) foi o que fez contensão à depressão materna. Também houve a pontuação de que Petra se salva quando começa a procurar a irmã fora dela mesma, sendo essa a marca da efetiva separação, que finaliza um longuíssimo trabalho de luto. Neste ponto foi consenso que esse momento de corte (buscar as pegadas de Elena em NY) permitiu a Petra constituir Elena para além do mito. A atuação no teatro foi lembrada como possibilidade de repetição para a elaboração e passagem de fases, pois é uma repetição com diferença. Também o fato de o filme enxertar poesia o tempo todo, através das imagens, das pequenas frases, da música, num contexto de pura angústia, como uma tentativa de furar o duro (da morte, da dor, do real mesmo) com o delicado. Destacou-se também a forma não moralista como o roteiro lida com a verdade e o ficcional, mostrando a tênue passagem, reversibilidade entre um e outro.
Por último, não passou despercebido a sociedade das imagens, o mundo visto através das telas, tanto por Elena como pela sociedade americana, que já desde muitos anos atrás, que filmava tudo, assim como o ideal do cinema americano, hollywoodiano, para as três mulheres, em seus sonhos de serem atrizes.
[1] Publicado em Modern Language Notes, n. 94 (1979) e em The rhetoric of romanticism. Nova York: Colum-bia University Press, 1984, pp. 67-81. Cf. Man, Paul de. “Autobiografia como des-figuração”. Tradução de Joca Wolff. Em: Sopro. Panfleto político-cultural, n. 71, maio de 2012, Ilha de Santa Catarina, p. 04. Disponível em: http://www.culturaebarbarie.org/sopro/n71pdf.html [2] Cf. Barthes, Roland. A câmara clara. Tradução de Júlio C. Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 46: “Em latim existe uma palavra para designar essa ferida, essa picada, essa marca feita por um instrumento pontudo; essa palavra me serviria em especial na medida em que remete à idéia de pontuação […] pois o puntum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctum […] é esse acaso que […] me punge”. [3] Lispector, Clarice. Um sopro de vida (Pulsações). Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 13. [4] Idem. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 12.
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