De volta a sala escura

Zeca Camargo – blog do G1 – 13/5/2013

Um filme muito lírico

Rubens Ewald Filho - Portal Pepper – 29/5/2013

Mortalha Reflorida

Ricardo Daehn- Correio Braziliense – 17/5/2013

Cartografias de um luto

Por Lucíola Freitas de Macêdo* – Blog Subversos – 20 de maio de 2014

O filme ELENA é um testemunho. Um objeto de arte ao serviço do trabalho de luto onde parecia haver apenas lugar para a melancolia. Havia a melancolia de Elena que nasce na clandestinidade de seus pais: traça-se aí um destino? Havia também a de sua mãe. Parecia uma única é só melancolia, ambas amalgamadas. A clandestinidade parece ter funcionado como causa e condição do amor dos pais. Com o fim desta, dá-se a primeira separação. Elena para de filmar, começa a se distanciar, e depois, escolhe de novo a clandestinidade, vai para Nova York em busca de um sonho: ser atriz. O gozo clandestino parece central no destino que une essas mulheres: o mundo deserto, o desamparo, o desligamento, a solidão.

Sete anos, a pior idade. O suicídio da irmã, a culpa da sobrevivente e a fantasia mortífera da mãe: entrar num carro e se jogar num precipício. E o resto, era só silêncio. Uma razão (ainda que provisória) para viver: fazer a mãe sorrir. Medo de enlouquecer, como Elena. Vinte e um anos. Percebe: que está mais velha que Elena, não morreu nem enlouqueceu: “Você Elena, está dentro de mim… me afogo em você, a minha Ofélia… a dor e o prazer de trazê-la entranhada na carne, a dor no prazer… pouco a pouco as dores viram água… a água e o sonho…”. Ofélias flutuam de dor e prazer. Elena é sua “memória inconsolável, de onde tudo nasce e dança”. Memória que parece não encontrar conforto, mas encontrará um lugar no objeto de arte: Elena, o filme.

A via do sujeito e a do objeto de arte

A via do sujeito:

Petra declara em recente entrevista: “através da arte consegui ressignificar o trauma da perda da minha irmã, elaborando meu luto por esse viés”… “o filme era algo que devia a minha irmã e havia me prometido fazer dez anos antes; é também uma oportunidade de discutir o suicídio de um ponto de vista feminino”… “O filme tem como objetivo tirar minha irmã do mundo dos esquecidos e trazê-la de volta”… “o encontro com os diários de Elena foi como tocar o mundo dos esquecidos. Esse encontro criou uma espécie de crise de identidade, pois em alguns momentos já não sabia mais quem era minha irmã e quem era eu”, o que é notável também no filme. Dos sonhos: “um dia acordei perturbada com um sonho em que Elena e eu nos confundíamos e eu já não sabia quem havia morrido, se ela ou eu, e foi a partir dessa confusão de identidades entre as duas que pensei em iniciar o filme. Mergulhei no filme para cumprir minha promessa, pois sentia que devia isso a Elena”.

O que foi possível ler: Petra parecia assombrada pelo espectro e não exatamente pela memória da irmã, pois para lembrar é preciso ter esquecido. Assombrada pela culpa por não ter sido possível salvar a irmã. Assombrada por uma dívida que atribuíra a si mesma, que se de início parecia impagável, pois se constituía no simples fato de estar viva, parece começar a deixar de assombrá-la no momento em que coloca-lhe um preço: fazer um filme para Elena.

Dá–se um primeiro mergulho: nos diários e imagens filmadas por ela ao longo de sua vida; Petra decide ela mesma se servir desse utensílio que conectava a irmã à vida; com o filme, empresta sua própria voz à irmã, dá-lhe voz, misturando-se com ela. Nesse ponto, há o trato do artista com o objeto de seu luto e com seus objetos a, como matéria incandescente por meio da qual virá a moldar e esculpir um objeto de arte.

Há um primeiro tempo, que é o do trauma, marcado pelo instante de um encontro com o real.

Depois um segundo tempo, no qual o sujeito escolhe o caminho de emprestar sua voz à irmã: é ela quem fala misturada em sua voz, através das suas imagens e de seu corpo.

O caminho do luto por meio da criação e o empréstimo da voz ao objeto de amor, para sempre perdido, assemelha-se, curiosamente, ao caminho trilhado também por Mallarmé, que ao identificar-se com a irmã morta, escreve Heródias, e depois, com a perda da mãe e também a do filho, engendra sua obra ao mesmo tempo em que labuta com seus lutos. Ou ainda, aquele de Primo Levi, autor de Os afogados e os sobreviventes,cuja obra se inscreveu a causa de emprestar sua voz aos submersos, aos milhões de judeus mortos nos Campos de Concentração Nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.

No terceiro tempo, um segundo mergulho: não no corpo da irmã, no qual poderia afogar-se de uma vez por todas. O filme, em sua condição de objeto de arte, virá a funcionar como objeto separa’dor. Em seu processo de criação Petra constitui, entoa e modula uma voz própria, de modo que Elena poderá silenciar, passando a não mais ocupar a totalidade de seu ser, de seu corpo, de suas entranhas. Deste momento em diante, passará a habitar sua memória, “como memória inconsolável, de onde tudo nasce e dança”. Onde é possível mergulhar e flutuar. Mergulhar e flutuar.

Algumas considerações sobre o objeto de arte: se o irrepresentável existe

Muito pertinente, me parece, foi a escolha estética de Petra: operar por meio da estética do fragmento e da bricolagem de cenas-sombra, borradas , como as cenas dos sonhos, ou como num mergulho nas imagens da memória inconsolável para descobrir, através deste gesto’processo’experiência, como flutuar.

O filme me trouxe à memória, de imediato, um livro de Jacques Rancière que se chama O destino das imagens, especialmente a passagem na qual interroga, quanto ao objeto de arte, se o irrepresentável existe. Trarei aqui algumas elaborações preciosas de Rancière, pois me parecem muito pertinentes quanto ao que está em jogo no filme que acabamos de assistir, sobretudo no que concerne o objeto de arte e a representação do trauma. Vejamos o que ele nos diz:

O problema apresentado no título não requer uma resposta em termos de sim ou não. Concentra-se antes no se: sob quais condições é possível declarar certos acontecimentos como irrepresentáveis? Tal indagação é motivada por certa intolerância, declarada, do autor, quanto ao uso inflacionado da noção de irrepresentável e de uma constelação de noções vizinhas: o não apresentável, o impensável, o intratável, que acabam por englobar sob um mesmo conceito uma série de fenômenos heterogêneos – a representação do holocausto, o sublime kantiano, a cena primitiva freudiana, o Quadrado branco sobre fundo branco de Malevitch – envolvendo-os com uma aura de terror sagrado.

O horizonte do problema convoca uma indagação mais restrita acerca da representação como regime do pensamento na arte. O que se quer dizer, exatamente, quando se fala que certos acontecimentos, ou situações, são irrepresentáveis pelos meios da arte? Quer dizer que por um lado, é impossível tornar presente o caráter essencial da coisa em questão. Não se pode coloca-la diante dos olhos, nem encontrar para ela um representante que esteja à sua altura. Por outro que algo é irrepresentável pelos meios da arte em virtude da própria natureza desses meios, pois 1) esta se caracteriza por um excesso de presença, o que é por si só uma traição à singularidade do acontecimento; 2) Esse excesso de presença tem por correlato um status de irrealidade que retira da coisa representada seu peso de existência; 3) o jogo do excesso e da falta que lhe é próprio, se tornaria incompatível com a gravidade da experiência que contém. Então se indaga se certas coisas seriam da alçada da arte, já que não podem se acomodar ao excesso de presença, ou à subtração de existência que definiriam, em termos platônicos, seu caráter de simulacro.

Mas eis que é possível enxergar nas narrativas de testemunho, um novo tipo de arte. Se trata menos de narrar o acontecimento que de testemunhar um aconteceu que excede o pensamento, não só por seu excesso próprio, mas porque é próprio do aconteceu exceder o pensamento. Testemunha-se, deste modo, de um desacordo fundamental entre aquilo que nos afeta e aquilo que o nosso pensamento poderá elaborar. É próprio deste novo modo de arte inscrever o rastro desse irrepresentável.

Há objetos que arruínam toda e qualquer relação harmoniosa entre presença e ausência, entre sensível e inteligível, entre mostração e significação, entre agir e padecer, de modo que esse impossível exigirá um novo modo de arte. Ou seja, a impossibilidade de representação é relativa, no campo da arte, ao que está em jogo, ao que estrutura a ordem representativa à qual se endereça. O que se opõe ao regime representativo da arte não é um regime da não representação, mas aquilo que produz uma ruptura, ou a derrocada de determinado regime representativo. Então, de novo a pergunta: em determinado regime de arte o que a ideia de irrepresentável? Pode ser uma falha na regulagem entre o sensível e o inteligível, tal qual a fórmula de Lyotard, mas ao invés dessa falha aniquilar ou implodir a representação, ela poderá, ao contrário, permitir, por exemplo, uma coexistência entre sentido e sem sentido, entre presença e ausência, tal como costumamos encontrar nas obras que se dedicam à representação de fenômenos tidos como irrepresentáveis, a exemplo da literatura produzida ao longo dos últimos anos em torno da experiência dos Campos de Concentração.

A experiência do inumano não conhece intrinsecamente, ou a priori, nem uma impossibilidade absoluta de representação e nem, tampouco, uma língua própria. Não há uma língua própria do testemunho. Nos casos em que um testemunho se propõe a expressar uma experiência do inumano, a ficção estética se contrapõe à ficção representativa. A rigor, seria possível dizer que o irrepresentável repousaria justamente aí, na impossibilidade de uma experiência se expressar em uma língua própria, estável, convencional e convencionada (tal como Levi certa vez afirmou: à língua faltam-lhe palavras para dizer da ofensa). Mas essa coexistência entre próprio e impróprio, excesso e falta, sensível e inteligível, é uma marca mesma do regime da arte.

Tomemos como exemplo o filme Shoa, de Claude Lanzmann, para então fazermos o exercício de pensar o irrepresentável que se faz objeto de arte, também no filme Elena: a cena de hoje é semelhante ao extermínio de ontem pelo mesmo silêncio, a mesma calma do lugar. Tanto hoje, durante a filmagem, como ontem, cada um cumpre a sua tarefa de modo muito simples, sem falar sobre o que faz. Mas essa semelhança revela, ao mesmo tempo, uma dessemelhança radical, a impossibilidade de ajustar a calma de hoje à calma de ontem. A inadequação do lugar deserto à palavra que o preenche confere à semelhança um caráter alucinatório. A impossível adequação do lugar à palavra e ao próprio corpo da testemunha atinge o cerne da supressão a ser representada. A palavra da testemunha enquadrada pela câmera confirma o inacreditável, a alucinação, a impossibilidade de que as palavras preencham esse lugar vazio, invertendo a lógica das coisas. Desse modo, o real do Holocausto que é filmado, então, é o real de seu desaparecimento, de seu inacreditável, seu caráter lacunar. É isso o que se torna legível: sua fratura, sua lacuna, seu não há. Para Rancière, não haveria, intrinsecamente, uma propriedade do acontecimento que possa vetar de uma vez por todas suas possibilidades de representação, interditando a arte enquanto artifício que se constitua como bordas do real. Não haveria o irrepresentável como propriedade do acontecimento.

Mas é preciso fazer escolhas: pelo presente, contra a tentação de uma narrativa inesgotável, própria à perspectiva histórica; pela materialidade do processo, ao invés da busca pela representação das causas; é preciso deixar o acontecimento em suspenso em relação às causas, pois este é rebelde a qualquer explicação por um princípio de razão suficiente, seja ele ficcional ou documental. Deixar “em suspenso” não se opõe aos meios dos quais a arte poderá dispor: investigar algo que desapareceu, um acontecimento cujos rastros se apagaram, encontrar testemunhas, convidá-las a falar da materialidade do acontecimento sem dissipar seu enigma. Foi isso o que fez Lanzmann e também, a seu modo, Petra.

Colocaram-se a trabalho, movidos por um terror primeiro, por um choque inicial que os transformaram, em um primeiro momento, em reféns de seu Outro. O inconsciente, esse estranho familiar, se fez presente, concreto. Assim, a arte teve a chance de se constituir como testemunha do “acontece”, do que arrebata, do que desampara o pensamento, como inscrição de um choque do significante com o corpo, esse também da ordem de um acontecimento. O disse Petra, para Elena: “me afogo em você”.

 

* Lucíola Freitas de Macêdo é Psicanalista Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, Diretora de Ensino do IPSM-MG, Doutorado em Psicanálise e Estudos da Cultura-UFMG, autora de Soante (poemas, Scriptum 2013) e editora da Coleção Estudos Clínicos (Scriptum).

Você vai querer conhecer Elena

Por Pedro H. S. Lubschinski – CinePlayers – 13/05/2014
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“Você não ia querer conhecer Elena.”

À época da divulgação de seu lançamento, esse tocante Elena ganhou um vídeo que se tornou viral nas redes sociais e trazia diversos artistas nacionais respondendo à pergunta “quem é Elena?”, nos revelando, em pequenos depoimentos, momentos vividos ao lado da moça que empresta seu nome ao filme. As entrevistas, filmadas diretamente por Petra Costa, cineasta responsável pelo filme, contam com memórias reais daquelas pessoas, tornando a frase que muitos deles dizem em momentos distintos – e que utilizei para ilustrar esse texto -, perfeitamente compreensível, afinal, conhecer Elena, para eles, foi ficar eternamente marcado pela memória daquela jovem e bela mulher, que se suicidou aos vinte anos de idade na mesma Nova York que pensava ser o cenário da realização de seu sonho de ser atriz de cinema.

É partindo para essa mesma Nova York que a diretora e irmã caçula de Elena vai atrás da irmã mais velha, que partiu de sua vida quando ainda tinha sete anos de idade. Não é uma busca física – por mais que a sua caminhada perdida pelas ruas da cidade norte-americana pareça guardar uma fagulha de esperança de esbarrar na irmã -, mas sim, uma jornada pela essência daquela mulher, que é paradoxalmente reconstruída e desconstruída diante do espectador através de depoimentos de Petra, a mãe das moças Li An, cartas enviadas por Elena – e que por vergonha da letra feia, eram “escritas” em forma de áudio, em fitas cassete -, imagens de arquivo pessoal, e claro, através da poesia de som, texto e imagem comandada por Petra e que acabam formando uma obra sobre sua irmã, mas também sobre ela própria no processo.

Recheado de metáforas e simbolismos que dão vazão à sentimentos que vão da dor ao amor, Elena é como já dito, uma poesia, que transforma emoções em arte, a mesma arte sem a qual Elena não imaginava-se vivendo sem. Assim, luto se torna verso. Saudade, rima. Dor e amor, se tornam memórias inconsoláveis, que motivam uma busca que se torna ao final, memória fílmica, recheada de lirismo que transborda sobre cada letra do poema em forma de carta, que emociona e inspira lágrimas ao término da leitura.

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E assim, conhecemos e nos tornamos íntimos dessas três personagens fascinantes – sim, por que também a mãe das moças é desnudada pelo documentário -, que apaixonadas por sua arte, não medem esforços desde os primeiros anos de vida para atingir seus sonhos. E quanto mais conhecemos aquelas pessoas, mais seus sentimentos são assumidos por nós. Assim, se a alegria de Elena ao enviar uma carta relatando seu encontro com Francis Ford Coppola nos contagia com seu entusiasmo, logo a dor de sua voz descrevendo uma depressão cada vez mais profunda, que acabaria por consumi-la completamente a ponto de levá-la à morte, nos arrasa. Da mesma forma, acompanhar o amadurecimento de Petra é simultaneamente lindo e doloroso, como não poderia deixar de ser ao vermos uma garota de sete anos lidando com o medo de ser levada pela mesmo depressão da irmã, ou a sensibilidade com que essa mesma garota lida com a dor da mãe, buscando sempre alegrá-la, mesmo que por um curto período de tempo, ainda mais ao se dar conta que aquela mulher também não ficará ao seu lado eternamente (ao menos fisicamente, já que Elena nunca saiu do lado da família, como prova o filme). E é essa mesma sensibilidade que apenas aumentaria ao longo dos anos, se tornando seu norte cinematográfico e encharcando as imagens de seu filme, tal qual a cena onde a diretora, sua mãe e diversas outras mulheres, todas Elenas, Petras e Lis, flutuam sobre a água, em um momento catártico.

E se em dado momento da projeção um documento surge na tela informando que o coração de Elena pesava, fisicamente, trezentos gramas no momento de sua morte, é difícil não pensar que metaforicamente o coração das três mulheres vão muito além desse número, tendo se tornado paradoxalmente mais leves – ao se livrar de dores que teimavam em não deixar o peito – e mais pesados – com novos sentimento ocupando o lugar dos que saíram – ao fim dessa bela obra.

Tão bela, que alias, contrario os personagens da divulgação do filme e afirmo, você vai querer conhecer Elena. Mas, não só ela. Vai querer conhecer também Petra e Li An. E já adianto: será um prazer.

Uma carta de amor pública

Por Hugo Gomes – Blog Cinematograficamente falando (Portugal) – 17/4/2014

Será possível alcançar os limites do documentário? Existe uma matriz que o define ou uma formula mestra que nos realça a verdadeira essência equacional da sua transfiguração enquanto cinema?

Com ELENA de Petra Costa, tais questões surgem e assentam na atmosfera fantasmagórica com que o documentário se funde com a poesia, quer lírica quer visual, a encenação com a realidade dos factos e a emoção técnica com a frieza da narrativa. Todos esses ingredientes contraditórios unem-se para gerar um híbrido, não no sentido abominável, mas no divino da palavra. Um filme que paira entre os diversos cantos da arte, passando pelo teatro primórdio remoto da Grécia Antiga até aos maneirismos do egocentrismo artístico tão claro na Arte Moderna.

ELENA é acima de tudo uma carta de amor pública, denunciante aos lugares-comuns e às banalidades da mesma, construindo uma linguagem suportada por um visual digno de barro, inegavelmente moldável e cúmplice para com a sua autora, Petra Costa, que dedica este trabalho à sua falecida irmã, um modelo que seguiu de perto e que viu sucumbir num ápice. Contudo, nunca na sua memória, pelo que ELENA (filme) remete-nos à perda e ao medo da solidão, ao espírito decadente que inflige os seus golpes numa narrativa que para além de reforçada com o seu instinto artístico é combatida pelo afecto e pela veneração de uma figura carregada de emoção. É que a autora constrói uma fita tão pessoal que chegamos a sentir-nos culpados em “invadir” este seu Mundo.

Voltando à questão inicial, é possível identificar o esgotamento da veia documental? Por enquanto não nos é permitido garantir uma resposta concreta, sendo assim, ELENA demonstra o quão ínfimas são as possibilidades de trazer cinema e torná-lo em algo infinitamente diversificado. Onde muitos viram vídeos caseiros e citações poéticas, Petra Costa viu Arte na sua forma mais pessoal.

Filme visualizado no FESTin 2014: Festival de Cinema Itinerante de Língua Portuguesa.

 

O alívio poético

Por Lud Mônaco – Blog Film Reviews (Itália)- 8/4/2014

ELENA é um documentário de caráter ensaístico, o qual relata a itinerância de Petra pelas ruas de Nova Iorque em busca de sua irmã mais velha, Elena, anos após haverem vivido juntas na grande metrópole. A andança de Petra se intercala com cenas de sua infância e a protagonista mergulha em um mar nostálgico, retraçando os caminhos do passado, inspirada por antigas imagens registradas pelos olhos de Elena. A trajetória é acompanhada pela mãe das irmãs, que também sofre da enorme necessidade de encontrar Elena.

Quem assiste a essa busca deve estar disposto à converter-se em um efêmero membro da família, pois durante 80 minutos estará indubitavelmente imerso em suas vidas e seus aposentos, circulando em sua casa, não como um estranho, mas como um íntimo hóspede. Essa é a consequência de uma narrativa que nos envolve através da poética de sua tristeza e a verdade de seus versos, que culminam num relato arriscado, alternando entre passado e presente, realidade e mente, com uma contundência que até assusta, talvez pela insustentável sutileza de seus fatos.

Até que nos deparamos com uma tragédia particular que leva à ruptura do tronco feminino da história, e descobrimos a intervenção de Elena em seu destino, que mais parecia uma metáfora de seu variável interior:

Elena abandona seu talento, sua irmã e sua mãe.

A partir daí acompanhamos a essa “busca” desde uma diferente perspectiva, a qual explora a sensibilidade de Petra, quem procura aliviar algo que já não está, mas que não obstante ainda vive dentro e é parte inegável dela. Petra chega a homogeneizar suas angústias com as da irmã, e de repente, navegando nas profundidades da protagonista e autora, vemos a viragem de uma história particular se transformar em um tema universal, através da conceitualização da dor da perda, e as ansiedades de uma idade. Esse é o momento em que o espectador olha pra dentro e enxerga a sua Elena. Ao final, o documentário não nos apresenta uma solução, mas como Petra alcança um alívio poético, imortalizando em um filme, a angústia de sua vida.

Saudade e lembrança

Por Gabriela Miranda – blog Viagem a Terra do Nunca – 5/4/2014

Depois de ficar um bom tempo sem postar, eu finalmente voltei com a resenha de um documentário brasileiro maravilhoso. Espero que gostem.

O filme foi dirigido por Petra Costa, seu lançamento foi em 2012 e seu gênero é documentário.

Sinopse: Ao viajar para Nova York, Elena segue o sonho de se tornar atriz de cinema e deixa no Brasil uma infância vivida na clandestinidade, devido à ditadura militar implantada no país, e também a irmã mais nova, Petra, de apenas sete anos. Duas décadas depois, Petra, já atriz, embarca para Nova York atrás da irmã. Em sua busca Petra apenas tem algumas pistas, como cartas, diários e filmes caseiros. Ela acaba percorrendo os passos da irmã até encontrá-la em um lugar inesperado.

O que eu achei: Com toda certeza, ELENA é o meu documentário/filme brasileiro favorito. A voz da Petra e as suas palavras são maravilhosas. Todas as fotos e vídeos caseiros da vida de Elena nos dão um ar de saudade e lembrança. E ver todo esse amor que Petra tinha pela irmã é de emocionar qual quer um, e eu fui um desses.

Petra se tornou uma grande inspiração para mim por diversos motivos. Primeiro: Ela foi uma diretora incrível, e quem saiba eu consiga ser como ela. Segundo: A mensagem que ela passa no filme é de maneira sútil e nos deixa pensando nela por dias.

Recomendo demais esse filme, e se você tem algum irmão/irmã prepare seus olhos para não alagar a sua casa.

Homenagem e confissão

Por Aníbal Santiago – Blog Rick’s Cinema – 5/4/2014

Realizado por Petra Costa, ELENA é um filme amplamente pessoal, mesclando alguns vídeos caseiros com depoimentos e trechos filmados pela realizadora, unidos por uma narração delicada e uma banda sonora adequada, enquanto nos apresenta a história da personagem do título, a irmã da cineasta. Quase como um diário, ELENA surge simultaneamente como uma homenagem e confissão de Petra Costa, apresentando-nos a sua relação com Elena através de vídeos caseiros de ambas, ao mesmo tempo que a cineasta continua a lidar com as feridas abertas pelo suicídio da irmã mais velha. Elena Andrade sonhava ser atriz de cinema, tendo partido para Nova Iorque em busca do sonho, embora este nunca se tenha concretizado, com esta a entrar numa espiral depressiva que a conduziria ao suicídio. Petra Costa tomou a decisão de realizar o filme quando tinha dezessete anos e encontrou um diário de Elena, escrito quando esta tinha a mesma idade, treze anos antes, aproveitando ainda as várias horas de vídeos caseiros realizados pela irmã. Neste sentido estamos perante uma obra deveras pessoal, marcada por alguma candura e poesia, pronto a apelar ao sentimento do espectador, revelando-se um bom exemplo da imagem como preservação da memória daqueles que mais amamos. Não é que Petra algum dia se esquecesse totalmente de Elena, mas os vídeos caseiros permitem preservar memórias que surgem expostas nestas imagens em movimento, bem como a investigação desenvolvida pela cineasta, algo que esta evidenciou em entrevista ao Adoro Cinema: “A parte prazerosa foi que ganhei uma irmã neste processo, já que tinha poucas memórias da Elena por ser muito pequena e a via meio como uma lenda”.

Temos ainda a presença da mãe de Elena e Petra, com as três mulheres a terem um papel fundamental ao longo deste documentário intimista e terno, onde lidamos com uma temática tão pessoal e universal como a perda de um ente querido. Elena suicidou-se quando Petra tinha sete anos, deixando nesta última marcas profundas, a ponto desta ter sido sujeita a terapia, com este documentário a parecer surgir como a fase final de um percurso terapêutico, enquanto somos apresentados a estas duas irmãs que tanto têm em comum, embora uma já não esteja no mundo terreno. As decisões de Petra acabam por se unir com as de Elena, veja-se que a primeira também decidiu ser atriz, deambulando por Nova Iorque, pelos locais onde estivera a familiar (quando Elena deixara para trás uma infância passada na clandestinidade dos anos de ditadura militar), enquanto o percurso das duas se parece unir. Existe um interligar do percurso de ambas que é latente, como se as memórias do diário de Elena estivessem a ser revividas e reencontradas por Petra, enquanto esta toma a decisão de nos transportar para o interior de uma história pessoal.

Petra Costa atribuiu um tom onírico à sua obra, deixando-nos quase perante um sonho que nos inebria e comove, onde as memórias que passam e as que se formam colidem, ao mesmo tempo que uma irmã é recordada de forma humana, comovente, poética e cheia de sentimento. Não existe aqui sentimentalismo barato, mas sim uma forma distinta de lidar com o luto, de dar a conhecer alguém que tanto teria para oferecer, uma homenagem poética, onde Petra Costa mostra uma habilidade notória para trabalhar a imagem, unindo-a à palavra, com o argumento a ser fundamental para a percepção que temos desta relação. No final, as memórias até podem ser afogadas na água, mas cedo emergem, ao mesmo tempo que lidamos com temáticas tão comuns e humanas como uma irmã mais nova que se recorda da mais velha, um lidar com a dor de uma perda, mas também um seguir em frente essencial para a condição humana. As imagens em movimento mostram-nos Petra, ainda na sua juventude a brincar com a irmã (já representavam), a seguir com esta e a mãe, após Elena ser chamada para uma universidade dos Estados Unidos da América, mas também a sua dor, o sentimento de perda, onde uma concha foi deixada como recordação mas não traz novas vivências, onde vídeos mostram o passado mas trazem a dura realidade que estes momentos não podem ser repetidos no futuro. São pequenos fragmentos de vida e experiências selecionados para ELENA, mas também um conjunto de depoimentos tocantes, tais como o da mãe das duas protagonistas desta obra cinematográfica.

O pai pouco espaço tem, com Petra a preferir dar o destaque às mulheres, apresentando um estilo de filmar muito semelhante a “Olhos de Ressaca”, a primeira curta-metragem realizada por esta atriz e cineasta. Na sua primeira longa-metragem, Petra Costa traz-nos uma obra pura de sentimento e poesia, dá-nos a conhecer a sua Elena, aquela que guardou nas suas memórias, ou melhor, aquela que reconstruiu para o documentário, deixando-nos presos à história desta mulher que terminou com a sua vida. Elena dificilmente será esquecida, quer pelos seus familiares e aqueles que com ela privaram, quer pelos espectadores desta terna obra cinematográfica, um pedaço de poesia e sentimento, onde as imagens são trabalhadas e os sentimentos conquistados. No final, fica a certeza que a Elena de Petra Costa passou a fazer um pouquinho parte de nós e os trabalhos futuros da cineasta podem e devem ser seguidos com muita atenção.

Uma história sobre amor e arte

Por Rennê Cruz – Blog I can’t go back and I can’t go back – 23/3/2014

Então pessoal, já faz um bom tempo que não escrevo aqui. A verdade é que essa demora toda, se deve aquela situação em que você se vê imerso num redemoinho de preguiça, tarefas aos montes que exigem tudo que seus dois neurônios podem dar, e uma grande falta de vontade.

Isso explicado, vamos ao filme de hoje.

Olha como as coisas são: quando você decide que vai dedicar esse ano à assistir mais filmes que no ano anterior, o que acontece? Você faz exatamente o contrário! E enquanto meu hd vai se enchendo cada vez mais, eu recentemente vi um filme muito bonito. Chama-se ELENA (Brasil, 82 min. 2013). E não poderia ser diferente, com esse que é um dos nomes mais lindos para uma mulher. E de quebra é também uma produção brazuca.

É dirigido pela Petra Costa, e preciso adiantar que a história contada nesse longa é bastante autobiográfica, pois Elena é a irmã de Petra. Inclusive, Petra além de dirigir e roteirizar,  também atua. Além do mais, o filme é grande e belo justamente por causa desse peso de realidade – quase documentária – por causa do seu caráter biográfico.

Sinopse do filmow: 

Elena viaja para Nova York com o mesmo sonho da mãe: ser atriz de cinema. Deixa para trás uma infância passada na clandestinidade dos anos de ditadura militar. Deixa Petra, a irmã de sete anos. Duas décadas mais tarde, Petra também se torna atriz e embarca para Nova York em busca de Elena. Tem apenas pistas. Filmes caseiros, recortes de jornal, um diário. Cartas. A todo momento Petra espera encontrar Elena caminhando pelas ruas com uma blusa de seda. Pega o trem que Elena pegou, bate na porta de seus amigos, percorre seus caminhos. E acaba descobrindo Elena em um lugar inesperado. Aos poucos, os traços das duas irmãs se confundem, já não se sabe quem é uma, quem é a outra. Agora que finalmente encontrou Elena, Petra precisa deixá-la partir.

Conhecer a pessoa da Elena foi uma grata surpresa. Pra mim foi como tomar conhecimento da existência de um grande ser humano. Alguém que quando em vida, se esforçava ao máximo para ser aquilo que queria ser. Alguém que buscava viver e ser feliz, independentemente os preços à se pagar por tal filosofia de vida.

Para mim, o filme alterna muito sutilmente entre um estilo documental e outro poético. O que para mim, foram escolhas acertadas e que funcionaram de acordo com a história e as emoções a serem transmitidas (que presunção a minha!).

Então o filme é uma forma de contar uma história que a maioria não sabia existir? Como forma de resgate da memória de Elena? Não só isso. Pietra ao fazer uso de gravações caseiras do seu próprio arquivo pessoal, segue tanto uma trajetória de homenagem à irmã, como também um percurso de superação do trauma e com isso da construção de si mesma. Aliás, não só de si, mas de todos aqueles envolvidos nessa tragédia: sua mãe, seu pai, e outros. A busca da realização dos sonhos de Elena serviu como combustível para que a irmã caçula pudesse trilhar os seus próprios. e provavelmente as cenas do final do filme, resumem bem a união dessas personagens: mãe, irmã, e filha.

Termino essa postagem com o trailer do   filme/documentário, e espero que você o assista. Pois é muito bom. E não é apenas uma história sobre o amor fraternal, ou memória, ou sobre melancolia, é uma história sobre amor e arte.

ELENA é uma carta à vida e um sussurro de sensibilidade!

Por Wagner Passos – Iceberg – Aquilo que pode emergir – 11/02/2014

 

Um dos documentários mais simples, verdadeiros e tocantes que já vi em toda minha vida!

ELENA é uma carta a vida e um sussurro de sensibilidade!

Um manifesto de coragem escrito e filmado pela cineasta Petra Costa, que vai a busca de sua irmã desaparecida em Nova York, cidade que ela escolheu para viver, procurando aquilo que sua mãe não conseguira ser: atriz de cinema!

ELENA retrata de maneira dolorida os complexos sentimentos daqueles que ficam, diante daquele que se vai!

Mas também retrata com leveza, uma leveza que emana dos olhos dos personagens filmados, da maneira de falar, dos vídeos caseiros mostrados, da câmera próxima, dos cenários naturais, das casas simples…

É difícil realmente exprimir o impacto do filme!

Material caseiro, depoimentos cabisbaixos, falas sinceras, e uma trajetória de limpeza de uma alma, limpeza que se confunde com a própria execução da obra!

ELENA toca fundo no tema do suicídio!

O sonho, a busca, a frustração de uma menina e seu desaparecimento!

A saudade, a busca, o sofrimento de sua irmã e sua mãe!

O encontro com a verdade, o sentimento de vazio, a tristeza e o lento e penoso processo de avaliação da covardia e do egoísmo daquele ser tão venerado pela diretora, afinal, Elena era sua irmã mais velha!

E como complemento de tudo isso, a imagem de Ofélia boiando nas águas.

Mas essas também podem ser águas que lavam, que limpam, que ajudam a refrescar e enxergar a realidade da vida que deve prosseguir!

Que lavam a mágoa, que lavam o espírito humano no espírito do tempo no tempo da vida!

E restam os corpos boiando, os corpos renovados, mas que guardam as cicatrizes daquilo que aconteceu!
Elena, por que fizeste isso?!

Por que ao menos não tentaste compartilhar tua dor?!

Por que?!

ELENA de Petra

Por Marcela Antelo* – 20/1/2014

Artigo publicado na edição 73 de novembro 2013 da Revista da Escola Brasileira de Psicanálise.

Elena filme

Sabemos por Goethe, por Nietzsche, por Freud, e porque é assim, que Elena é o modelo de todas as mulheres. A culpada foi Elena de Tróia, que era de Homero e de Euripides, mais do que de Paris ou Menelau. Seguiu-a Elena, do Fausto, figura da praga que lhe joga o diabo Mefistófeles — nos joga? — “Verás uma Helena em cada mulher¹” e, mais recentemente, a Elena da tragédia de Althusser. E, porque a poesia obriga, hoje temos ELENA de Petra.

Elena é uma personagem que não sabia que andava em busca de um autor, até que o encontrou, e nada pôde saber disso. A psicanálise nos acostuma a habitar o abismo que há entre a verdade e o saber que dela podemos extrair, nos ensina a renunciar a essa cópula impossível, e à Petra agradecemos que o coloque em evidência, o ponha em cena.

Petra elucida o impasse que consiste em cantar loas ao ideal absurdo de um sofrimento mensageiro de verdades. “Não há verdade, que ao passar pela atenção, não minta”, dizia Lacan, e este princípio desafia o limite entre a ficção e o documentário. Não há tal limite, há borda, uma fronteira incerta que é, usando uma expressão de Lacan, um litoral, como o que separa e junta a areia do mar. Indecidível, diriam os lógicos.

Por isso adoro que a Elena de Petra seja aquática. Liquido amniótico por todos os lados, eis o feminino. Talvez por essa razão Virginia Woolf, outra mulher que ousou dizer da morte, a tenha realizado na água. Woolf procurou um gênero híbrido para dizer sobre sua vacilação, sobre a sexuação, a filiação, a vida e a morte. Freud chamou de “psicologia submarina” nosso procedimento de investigação, certa vez que decidiu falar sobre a morte.

Sabemos também do boom da literatura testemunhal, apesar de não ser uma novidade —Santo Agostinho, Montaigne, Rousseau, Proust. Uma aquática Amelie Nothomb nos transmite A metafísica dos tubos. O cinema não foge dessa febre. Cinema de testemunho, história oral, autobiografias, escrita de si, frenesi da memória. Ninguém se salva. Até a publicidade a explora. O livro de Paula Sibilia “O show do eu: a intimidade como espetáculo” o testemunha: ela fala de uma subjetividade das superfícies, de acordo com uma crescente publicização do privado: um festival de vidas privadas à disposição dos voyeurs, estridente no Brasil, terceiro país mais blogueiro do mundo, segundo ela. O eu como ficção gramatical inventa uma intimidade para si e a dá a ver em escritos êxtimos², satisfazendo a intensa fome de realidade que congestiona a web a cada dia. Vejo pelas perguntas que envolvem o filme na web que há algo assim em jogo para o espectador modelo. Sibilia encontra Lola Copacabana, autora de blogs e blooks, que declara o espirito da época: “Vivo constantemente fazendo o esforço para que não existam na minha vida coisas inconfessáveis.” Tirania de uma transparência cega como ideal da época. Ideal patético: como confessar o que se ignora? Pergunto-me a propósito da vida de Elena. Sibilia diz que hoje se rebobina a vida como um filme, operam-se flashbacks, se aplicam zooms, faz-se travelling ou close-up sobre cenas traumáticas, deleta-se ou se faz um back-up, turbina-se.

Por essa razão, neste comentário, quero insistir em que, no ELENA de Petra, a riqueza está no indizível. Klee disse em sua Confession créatrice que a arte “não reproduz o que é visível senão que o faz ver”. Petra faz uma mise-en-scène da memória, como Godard o propunha, o Cinema como fábrica da memória, mas levando em conta a máxima de Wim Wenders, um filme com buracos onde é possível se inserir.

ELENA de Petra está cheio de buracos, pois trata da escritura da memória no corpo. O que gosto na Elena de Petra é a pele do filme. O cheiro, o som.. Filme cheio de texturas, de superfícies e também texturas sonoras. Discursividade visual e tátil. O háptico, segundo a australiana Laura Marks⁴. Ele é singelo e sóbrio para um tema monumental como é o suicídio, que foi tratado pelos grandes, Coppola, Fassbinder, Haneke, Kieslowski, Truffaut, Amenábar, Lars Von Trier.

Esperemos que as elucubrações de saber não apaguem sua verdade, que não eliminem os buracos da renda fina que Petra teceu e que recolhe sereias e ondinas, insondáveis e recônditas, entre as que a bela e inquietante Elena habita. Tece narrando, porque, como disse Benjamin, o poder da correnteza da narração, — para continuar no aquático —, é levar a dor para longe⁵.

Petra cria pontes, tarefa do luto, sobre o abismo que há entre a experiência e o que dela podemos contar, entre a percepção e a memória, que Freud chamou de Das Ding, A Coisa. Cada vez que nos lembramos de algo, nos esquecemos de algo. O abismo não se dissolve, se povoa. Outro cineasta, Chris Marker, o disse assim: “Não lembramos, reescrevemos a memória as-sim como a historia é reescrita”’. Acontecimentos testemunhais que contam com a câmera de Elena como testemunha. Câmera subjetiva, nunca mais adequada, agalma do filme.

O processo performativo de contar a história de Elena é o modo de reescrever o presente de Petra, pertence ao gênero de Survivor testimony. Lembremos de Os afogados e os sobreviventes (1986), de Primo Levi.

Aí se impõe o meio dizer da verdade, porque abordamos os confins da vida com a morte. Lembremos sempre do furo: mind the gap.

Nesse diapasão, há uma frase da mãe que ressoa no meu Freud e na história da minha geração, a primeira nomeação que ela faz da existência de Elena: “barriga que salva a vida”. Freud parafraseia o príncipe Hal no Enrique IV, de Shakespeare, não sem introduzir uma pequena diferença. Parecemos ignorar, ele diz, que cada um de nós deve uma morte à natureza⁷. O debito se transmite de geração em geração. Freud laico não deve ao Deus pai e sim à natureza. Em lugar de silenciar, denegar, o termo certo é desmentir; buscar palavras para dizer da morte. É curioso que, em uma lembrança de um momento de iminência da morte, Freud faz uso de um duplo registro: um visual — troços de papel flutuando — e outro acústico — alguém lhe grita ao ouvido.

Elena é musa confessa de Petra. Musa como artifício de dar nascimento a um autor, aquele que deseja enfrentar a impotência da palavra diante do real sempre traumático. As musas celebram “as bodas taciturnas da vida vazia com o objeto indescritivel⁸”, nomeia Lacan em sua homenagem a Duras, outra musa de Petra, da qual também lemos as pegadas.

Para finalizar, uma observação em relação às palavras finais de Petra a sua amada e abismal irmã: “Eu me afogo em você”. Eu proponho reler o enunciado como um cogito “petriano”: “Eu me afogo em você, logo flutuo”.

¹ Enunciado citado em carta de Freud a Jung, datada de abril de 1909, segundo CASSIN, B. “L’inconscient, qui volt Hélène en toute femme” em Voir Hélène en toute femme. Collec-tion: Les empêcheurs de penser en rond. Paris, 2000. 

² SIBILIA, P. O show do eu: a intimidade como espetáculo, Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2008, resenhada em Correio, revista da Escola Brasileira de Psicanálise n° 69, set. 2011. 

³ ≪ L’art digne de ce nom ne rend pas le visible: II dessille les yeux » em KLEE, Paul, Confession créatrice em Grohmann, Will, Editions des Cahiers d’Art, 1959, p. 282.

⁴ MARKS, L. The skin of the film: intercultural Cinema, Embodiment, and the Senses, Duke University Press, 2000; ver “Haptic Visuality: Touching with the Eyes”, Frameworks 02/2004.http://www.framework.fi/2_2004/visitor/artikkelit/marks.html 

⁵ BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cullu ra, Obras Escolhidas 1, São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 205. 

⁶ MARKER, C. Sons soleil (100′, Argos Films, 1983). Roteiro em: http://www.markertexKcorrisans_soleil.htm 

⁷ Trata-se das palavras do príncipe Hal a Falstaff em Enrique IV (act. V. esc. 1): “Thou oweit God a death”. 

⁸ LACAN, J. «Hommage fait à Marguerite Duras, du ravissement de Lol V. Stein», ECF, Ornicar? n°34, Paris, p. 13. 

* Psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)

A lucidez de ELENA

Por Gislei Domingas – Blog Ventos de Giz – 18/1/2014

Elena_adolescente_Iemanjá_pb_1984Recebo a mensagem de que temos mais uma chance para encontrar Elena em Porto Alegre.

De quem se trata? Eu poderia trazer sua história e argumentar com a trama de sua vida o porquê deste encontro. Mas prefiro revisitar os afetos que permanecem comigo, depois de viver as intensidades da experiência de um dia que se fez marca no calendário de 2013, mas que me toca sem passar no tempo.

Numa tarde molhada, andei pelas calçadas que levam à Casa de Cultura Mario Quintana. A chuva era a companhia exata para chegar à sala desta sessão de cinema. Dia para abrir aquela caixa onde guardamos vestígios do tempo nas estações dos afetos: cartas, fotografias, bilhetes, pequenos objetos, diários, imagens que contam a vida. Um dia feito para perder-se na intimidade de memórias que guiam nossos trajetos   à medida que percorrem o enigma do esquecimento para receber a visita de nossas lembranças.

História de Elena sob o olhar da irmã. História da irmã na insistente memória que pousa em Elena. História delas, tua, nossa. Imagens que ultrapassam uma vida para nos tornarmos íntimos nos sentimentos que percorrem a existência.

Por vezes a sala de nossa casa, o quarto que nos esconde. Pode ser também a rua onde tantos transitam e entre eles o singular pisar de Elena. A chuva levou os vestígios do passo que marcou o chão, mas permanece o movimento de um olhar que nossa lembrança faz traço no tempo. E na partida de quem amamos as dores da vida que insiste em prosseguir. Entristeci.

Um convite para se enredar na sala de um cinema e entristecer? Sem a companhia da chuva e em pleno sol de verão?

Talvez.

Sim, eu senti a dor da tormenta que nos faz colocar a vida em questão. Dos vacilos que nos dilaceram na lembrança do que poderia ser, mas já foi. Mesmo assim insisto no convite. Encontro o ato corajoso de fazer do movimento da dor da própria vida a película da expressão. Ousar sentir com o outro o que se passa na pele de nossos corpos.

Triste e sensível, denso e afetivo. Transparente na arte de expressar a força que produz a vida. Corajoso.